por Igor Felippe
A realização de um plebiscito para a convocação de uma Assembleia Constituinte – que terá a missão de reformar o sistema político brasileiro – surgiu como um raio em céu de brigadeiro no contexto das mobilizações de massa de junho, em discurso da presidenta Dilma Rousseff em rede nacional de rádio e televisão.
O recado dado por Dilma à sociedade brasileira era claro: as demandas apresentadas nos protestos não poderiam ser atendidas sem estourar a trama de interesses sustentada pelo atual sistema político. E que a maioria dos parlamentares do Congresso Nacional não deixaria que uma proposta de transformação da política institucional fosse levada a cabo.
A proposta tocou o nervo dos donos do castelo do poder no nosso país, tanto que houve uma reação violenta da oposição ao governo, dos partidos conservadores da base e dos grandes meios de comunicação. O PMDB abriu guerra ao governo, a oposição passou a fazer acusações de “chavismo” e os jornais fizeram uma série de editoriais contra a Constituinte. Até mesmo parlamentares do próprio PT, já adaptados às características do modelo institucional, rejeitaram a ideia.
A pressão foi tão grande que, depois do tiroteio, a presidenta recuou e deixou a Constituinte em banho maria. No entanto, movimentos populares, organizações sindicais, entidades estudantis viram uma porta entreaberta para ocupar a arena política e passaram a empunhar a bandeira da Constituinte.
“Sem enfrentar os limites constitucionais de nosso sistema político não teremos nenhuma mudança estrutural. Assim como a “Diretas Já” foi uma palavra de ordem que se tornou meta-síntese da luta contra a ditadura, a “Constituinte Já” pode ocupar o mesmo papel”, analisa o dirigente da Consulta Popular, Ricardo Gebrim.
Mais de 170 organizações fazem uma campanha por uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana para reformar o sistema político, a partir da construção de comitês populares suprapartidários em todo o país.
“Os maiores partidos de esquerda, as principais centrais sindicais, pastorais e movimentos sociais estão participando, o que demonstra muita representatividade nas forças populares organizadas”, afirma Gebrim, que faz parte da coordenação da campanha.
Esses comitês realizarão um plebiscito popular, de caráter informal, na primeira semana de setembro, com uma única pergunta: “Você é a favor de uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político?”. Em seis meses de articulação, já aconteceram duas plenárias nacionais, foram realizadas reuniões em todos os estados e criados mais de 300 comitês, entre regionais, estaduais, municipais e locais da campanha.
“O plebiscito popular é uma importante ferramenta pedagógica, pois permite envolver milhares de ativistas. Ela possibilita construir a bandeira da Constituinte Exclusiva como uma meta síntese da insatisfação com o sistema político”, avalia Gebrim.
Quadro político
Mesmo com toda essa construção, de certa forma subterrânea, a proposta da Constituinte parecia hibernar diante dos protestos do “Não vai ter Copa”, da prioridade conferida pelos movimentos populares às pautas corporativas e da falta de iniciativa política do governo e do PT, frente à chantagem e ataques dos setores conservadores da base aliada e da oposição.
A derrota do governo e do PT nas articulações para impedir a instalação da CPI da Petrobrás, em um ano eleitoral, acendeu o sinal amarelo. Mais uma vez, a trama do sistema político se voltava contra eixos progressistas do governo, tendo como foco a Petrobras, que é o símbolo para os setores conservadores da política de fortalecimento do Estado e intervenção da economia. Além disso, as pesquisas de opinião negativas para o governo e o balão de ensaio do “Volta Lula” deixaram cicatrizes, por demonstrar as fragilidades da presidenta.
Diante dessas pressões, Dilma e o PT passaram a recolocar a bandeira da reforma política no centro do debate, dando maior unidade ao campo progressista e força à campanha pela Constituinte.
Em novo discurso em cadeia de rádio e televisão, na semana passada, Dilma retomou os pactos apresentados em junho e pediu a participação dos trabalhadores na discussão da reforma política. “Sem uma reforma política profunda, que modifique as práticas políticas no nosso país, não teremos condições de construir a sociedade do futuro que todos almejamos. Estou fazendo e farei tudo que estiver ao meu alcance para tornar isso uma realidade”, afirmou (veja aqui e leia aqui).
No Encontro Nacional do PT, uma votação sobre os pré-requisitos para as alianças nas eleições deste ano mostrou a força da Constituinte. Mais de 221 delegados do PT votaram para que o apoio à Constituinte Exclusiva fosse um fator determinante para as alianças. A proposta foi rejeitada por 286, mas demonstrou disposição de setores do partido de dar prioridade à Constituinte, mesmo sob o risco de romper a aliança com PMDB nas eleições.
“O engajamento do PT na campanha foi reafirmado no encontro e consta no texto-base que foi aprovado. O tema sacudiu o plenário e teremos um maior engajamento do conjunto do partido”, afirma o deputado federal Renato Simões (PT).
Perspectivas
A campanha vislumbra colocar a bandeira da Constituinte do sistema político como saída para resolver o conjunto das demandas da sociedade brasileira, especialmente se houver um quadro de explosão de protestos de massa no país. “O desafio principal é atingir a juventude não organizada que esteve fortemente presente nas manifestações de junho de 2013”, coloca Gebrim.
Para o escritor e historiador Lincoln Secco, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo, apenas uma Constituinte pode responder os anseios do movimento de rua de junho. “Só uma assembleia constituinte exclusiva poderia canalizar protestos tão difusos quanto os de junho. Havia uma pauta ampla e contraditória. Por isso, o problema central passou a ser a incapacidade do sistema político absorver e solucionar os conflitos que explodiram. De um lado, demandas de direita e de outro de esquerda, mas ambas fora das preocupações dos governos e dos partidos”, acredita.
No entanto, ele avalia como uma “incógnita” o estouro de novos protestos de massas neste ano. “Desta vez tanto a esquerda institucional que está no poder quanto os aparelhos repressivos que ela mal controla estão vacinados. Na segunda vez é sempre diferente. Felizmente, talvez não haja tempo do congresso promulgar a horrível lei antiterrorismo”, afirma.
Para Gebrim, existe um clima de insatisfação com a Copa pelos gastos considerados exagerados, que tem mexido com o imaginário popular, especialmente com a ação de uma parte da mídia. “Atos ocorrerão, terão grande visibilidade inclusive da mídia internacional. Se esses atos massificarão é algo que depende do acaso, por exemplo, de uma possível repressão, vítimas que despertem a solidariedade. Qualquer prognóstico sobre a dimensão dos atos, neste momento, é precipitada”, pontua.
Com o fortalecimento da proposta da Constituinte e o ensaio de uma reação política do governo e do PT, tendências da esquerda petista promovem um ato em defesa da convocação de uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana para o Sistema Político neste sábado em São Paulo.
“Chega desse Congresso balcão de negócios. O Supremo Tribunal Federal prova a cada dia que está a serviço das elites. Essas instituições não nos representam. No Plebiscito Popular de setembro, exigiremos uma Constituinte Exclusiva e Soberana que faça a reforma política, para abrir caminho às aspirações populares. Não há outro meio!”, diz o manifesto de convocação do ato, que reúne assinaturas de petistas e apoiadores que atuam como parlamentares, dirigentes de movimentos sociais, na universidade e militantes de base. Será que o PT está retomando a iniciativa política e se engajará nessa campanha?
Segundo Renato Simões, o partido tem uma estrutura organizativa grande e lenta, mas a campanha começa a entrar na pauta dos diretórios municipais e zonais, o que dará uma grande capilaridade aos comitẽs. “O plebiscito pela Constituinte é a única campanha com um eixo de massa que o PT pode se engajar”, afirma.
“A campanha pela Constituinte é um balão de ensaio necessário. Se der certo, a maioria do PT entra. Senão, fica restrito à esquerda petista. Foi exatamente assim na campanha do impeachment de 1992. Mas lá o PT era oposição e foi mais fácil radicalizar”, avalia Secco, que é filiado ao partido e autor do livro “A História do PT”.