Brasil: quem aposta na violência

 

 

Por Antonio Martins

Como 2014 promete emoções fortes… Em São Paulo, por pouco não surgiu, nas últimas horas, a primeira vítima fatal das manifestações contra a Copa do Mundo. Fabrício Proteus Chaves, de apenas 22 anos, correu risco de morte depois de ser baleado sábado, de modo covarde e fútil – no peito e nos testículos – por policiais militares. O secretário de Segurança tenta proteger os que atiraram. De Lisboa, a presidente Dilma Roussef convocou (para fevereiro) reunião de emergência… Porém, o silêncio, diante dos novos atos brutais cometidos pela polícia paulista leva a temer que o governo federal manterá, em relação aos protestos, a atitude de avestruz adotada a partir de outubro. A repressão concentra as atenções sobre o black-bloc. Mas será ele, de fato, um oponente da brutalidade do Estado? Ou, pelo contrário, contribui pra radicalizá-la, ao adotar a violência como arma política e tornar legítima, portanto, a lógica que sustenta a repressão policial? A seguir, três hipóteses sobre os últimos acontecimentos.

1. A PM paulista provoca manifestantes e age para criar um fato dramático

Pelo menos duas cenas demonstram que, na manifestação de sábado, a polícia militar de São Paulo voltou empregar violência gratuita e agir de forma abertamente provocadora. A primeira são os disparos contra o jovem Fabrício. Confira as imagens, em especial a partir do segundo 00:12. Fabrício não “se atira” contra um dos policiais (que havia tropeçado), como alega o secretário de Segurança. Sua queda é claramente precedida pela cena em que outro policial saca a arma e a aponta para o garoto. A conclusão evidente é que sofreu o impacto do tiro e caiu. Depois disso, quando já não poderia representar ameaça alguma, recebeu mais dois disparos, ambos à queima-roupa. No entanto, sem se dar a qualquer esforço de investigação, os jornais sustentamque há “duas versões” sobre os fatos – como se não fosse possível verificar qual delas é verdadeira.

A segunda cena é a ação brutal com que a PM agiu contra manifestantes que haviam se refugiado no Hotel Linson, na rua Augusta, assustados com a tropa de choque. Repare, nos dois vídeos. A tropa de choque entra aos berros, disparando balas de borrachadentro do saguão,contra pessoas que não esboçam resistência alguma (muitas deitadas no chão). Depois, ao conduzirem os detidos ao camburão, os PMs o fazem aos safanões e “gravatas”, chutando até mesmo um fotógrafo da Agência EFE que registrava os fatos.

 

Lembre-se: horas antes, a polícia não havia impedido os black-blocs de depredar dezenas de vitrines, fazer barricadas de fogo ou virar contêiners de lixo sobre a rua. Agora, é selvagem contra pessoas pacíficas. Este padrão bizarro de comportamento repete-se inúmeras vezes, desde as jornadas de junho. Por exemplo, na depredação do terminal de ônibus do Parque Dom Pedro II (25/10) (e também em outros estados, como no quase-incêndio da Câmara Municipal do Rio, em 7/10). Será apenas despreparo policial?

Ou a PM paulista age orientada por interesses partidários? Nas eleições presidenciais de novembro, a presidente Dilma tem amplas chances de vitória. Seus adversários conservadores buscam, para embaralhar o jogo, um fato – qualquer um – capaz de provocar comoção nacional. Gente como Geraldo Alckmin, que liderou a destruição do Pinheirinho, hesitará em reprimir manifestações com violência, se o ganho político puder ser esta comoção?

2. Obcecado pelo cálculo eleitoral, o Palácio do Planalto adota a estratégia do avestruz

O suspeitíssimo comportamento da polícia de São Paulo poderia ser um problema menor, se o governo federal fizesse alguns gestos simples. A presidente Dilma nem precisaria se envolver diretamente. Bastaria que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, responsável por coordenar a defesa da segurança pública no território nacional, declarasse, por exemplo, que está consternado com os tiros disparados contra Fabrício Chaves; ou que julga descabidos os procedimentos da PM no Hotel Linson. A polêmica estaria criada. Voltaria a ficar claro que há, no universo da política, visões distintas. Para alguns, as questões sociais são “caso de polícia”. Para outros, as reivindicações populares precisam ser recebidas com diálogo, não a bala.

Mas, desde outubro de 2013, houve uma reviravolta no governo Dilma. A presidente sabe que é acossada por uma mídia hostil. Está, obviamente, empenhada em se reeleger. Porém, julgou que, para isso, o melhor é adotar uma atitude de retranca. Como um time de futebol preocupado apenas em segurar um resultado, seu governo abdicou da ousadia. Nada cria. Deixa todas as iniciativas aos adversários. Torce apenas para que o tempo corra rápido, até outubro.

Talvez não perceba o quanto esta atitude é trágica – porque apaga, aos olhos da população, as diferenças. Assim como ocorre na Europa, há anos, surge a ideia de que os políticos são todos iguais, y no nos representan.

Esta postura contamina, aos poucos, todas as ações do governo federal. Na Economia, leva a Dilma ao Fórum de Davos, para dizer que o Brasil curva-se às ideias ortodoxas (leia análise brilhante de André Singer). Na resposta às manifestações sociais, provoca o encerramento do diálogo com os movimentos (ensaiado com sucesso em junho, mas interrompido em outubro) e aposta numa estratégia cuja base é o controle policial.

Ao invés de se manter crítico aos comandos das PMs e aos governos que as controlam, o ministro Cardozo afaga-os. Anuncia “ações conjuntas”. Promete “reforços”, “apoio”, “assistência”. Produz-se, então, o cenário dos sonhos, para os interessados em manter a brutalidade da tropa de choque e tentar usá-la com fins eleitorais. Eles se convencem de que poderão continuar a praticar barbaridades. E sabem que estão blindados pela mídia: qualquer episódio desastroso será jogado na conta do Palácio do Planalto…

Estão reunidos os ingredientes para um grande desastre político? Não: falta mencionar a indispensável contribuição dos black-blocs.

3. O Black-bloc reforça exatamente aquilo que diz combater

Desde julho, nenhum movimento social brasileiro obteve, da mídia, destaque comparável ao black-bloc. Em setembro e outubro, dezenas de milhares de bancários fizeram uma greve nacional como há muito não se via. Durou 22 dias e arrancou dos banqueiros um reajuste salarial acima da inflação. Jamais chegou às manchetes dos jornais ou foi destaque nos noticiários da TV. Em novembro, oito mil famílias ligadas ao MTST – mais que a população de milhares de cidades brasileiras – ocuparam, na zona sul de São Paulo, uma grande área antes reservada à especulação imobiliária. Lá, organizaram um sistema de convívio alternativo – na alimentação, limpeza, segurança, creches – que perdura e cresce. Quase não há reportagens a respeito, apesar do enorme interesse que despertariam. Mas uma manifestação de 1,5 mil black-blocs gerahoras na TV e dias seguidos de manchetes.

Num certo sentido, é compreensível. O black-bloc surgiu há pouco, no Brasil, e novidades atraem; além disso, fogo, fumaça e gente mascarada são elementos imageticamente fortes. Mas é provável que este não seja o único fator. Para quem quer multiplicar a repressão contra os movimentos sociais, nada mais útil que naturalizara violência; que apresentá-la como algo praticado igualmente pelos manifestantes e pela polícia; que levar a sociedade a aceitá-la ou desejá-la.

 

Um vídeo feito também no sábado, na Praça da República, por onde passou a manifestação contra a Copa, ilustra isso de modo emblemático. Milhares de pessoas assistem a um show musical. Um grupo de black-blocs investe contra o palco, atirando latas de cerveja contra os que lá estão. A multidão revolta-se. Um dos agressores mascarados começa a ser linchado pelos populares. Só escapa porque um segurança intervém, extintor de incêndio em punho. Ainda mais grotesco: o apresentador toma o microfone e exclama: “tem de dar porrada, mesmo”! É ovacionado pela multidão.

No sábado, os black-blocs produziram, em série, atos de violência gratuita como este. Diante do Teatro Municipal, hostilizaram os participantes de uma comemoração dos 460 anos de São Paulo. Testemunhas dizem que estouraram uma bomba. Investiram contra os policiais, com rojões e bolas de gude, antes de serem atacados.

Dizem ser radicais contra a opressão do Estado, mas a cena da Praça da República serve como metáfora do que podem, involuntariamente, produzir. Ao elegerem a violência como método de luta principal contra o aparato repressivo, acabam por legitimá-la. São compreendidos pelos que desprezamos o capitalismo – principalmente por serem jovens e não temerem expor-se ao risco. Mas que resposta sua atitude despertará, entre a vasta maioria que está fora de nossas redes sociais endogâmicas? Até agora, todas as evidências sugerem que não virão aplausos, mas apoio à ação policial, muito mais violenta: “tem de dar porrada, mesmo”!

* * *

A cinco meses da Copa do Mundo e a nove das eleições, há algo muito grave na conjuntura brasileira. O governo Dilma assemelha-se a um grande navio à deriva, que perdeu a bússola política e se orienta apenas pelo meteoro fugaz das eleições. Os movimentos sociais históricos atuam – mas não conseguiram, ainda, apresentar uma alternativa de conjunto, capaz de recompor um horizonte utópico e entusiasmar as maiorias. Grupos como os black-bloc são, evidentemente, incapazes de fazê-lo – e seria tolo esperar isso deles. A direita política e midiática, esta sim, parece saber muito bem o que quer. E está determinada a alcançá-lo.

 

 

Fonte; Outras Palavras

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