O laboratório de uma nova cultura política
Por Chico Whitaker, entrevistado por Inês Castilho, editora da coluna Outra Política
Liberdade, união, igualdade, autonomia, possibilidade de errar. Com a experiência de quem ajudou a criar o Fórum Social Mundial – cuja 12ª edição termina neste sábado, 30, na Tunísia –, e uma visão que atravessa décadas de participação em movimentos políticos, o arquiteto e ativista Chico Whitaker fala sobre os valores que sustentam uma nova cultura política.
“Novas formas de organização dos que querem mudar o mundo implicam ter redes funcionando, autonomia de todos os membros e um sistema decisório por livre consenso”, diz ele. “A rede é um processo, uma ligação horizontal entre as pessoas em que a comunicação se dá entre todos e a adesão a uma proposta se faz por convicção — não por hierarquia, disciplina ou ordem”, diz. “A novidade é exatamente a possibilidade de lançar convites no ar e ver quem vem.”
Para Chico, a cultura política que os Fóruns Sociais expressam é anterior a eles e está também presente em fenômenos de grande repercussão global, como a Primavera Árabe, e movimentos como os dos Indignados e o “Occupy”.
Ele atribui às antigas disputas por maiorias a responsabilidade pela divisão das organizações de esquerda. “A vontade da maioria é a forma mais democrática. Só que, quando esta decide, às vezes a minoria que perdeu é de 49%, e esses 49% criam outro partido. Como alternativa, adotamos a regra do consenso: o valor passa a ser a união, e não a vitória. Isso permitiu que o FSM continuasse funcionando. Não nos dividimos.”
Outra novidade dessa postura política é a possibilidade de errar – o que os psicanalistas talvez chamassem de aceitação da falta inerente ao humano. Noa Fóruns, isso se deu pela abertura à experimentação. “Não se pode autorizar só o que vai dar certo”, diz Chico. “Aceitar o erro é um salto qualitativo na postura da pessoa. Num quadro de luta pelo poder, ao aceitar que errou você ganha mais adeptos do que se tivesse afirmado a sua posição.” A esquerda viveu cem anos sob a égide do leninismo, com quadros disciplinados e estruturas verticalizadas – lembra Chico. O que estamos vivendo “são grandes mudanças.”
O novo diálogo é parte do estudo Política Cidadã, que o Instituto Ideafix produziu por encomenda do IDS (Instuto Democracia e Sustentabilidade) e que o site publica na seção especial “Outra Política“. A seguir, a entrevista – cuja edição não foi revisada pelo autor.
Como você vê a participação política do brasileiro?
Passou por etapas, e isso significa reaprendizados. E também por muitos preconceitos, plantados pela propaganda. Como existe um certo interesse de que as pessoas não se metam em política, criou-se, subliminarmente, a ideia de que política é coisa em que a gente não deve se meter, que divide as famílias.
Essas ideias vão sendo vencidas pela própria ação da sociedade. Com o processo das Diretas Já, seguido da Constituinte, a ideia de que a política é parte do cotidiano foi ganhando espaço. Durante a ditadura, participar da política era arriscado, a moçada viveu quinze anos sem poder falar disso. Mas hoje, tudo que é relativo à busca coletiva de soluções está crescendo no Brasil.
Quais temas mobilizam a sociedade brasileira, a seu ver?
Um tema que está mobilizando atualmente é o da corrupção. Não que haja mais corrupção, pelo contrário, mas está aparecendo mais. A Polícia Federal está mais eficiente e há liberdade para falar das coisas – então a imprensa, que tem uma raivinha, aproveita. Além disso, são temas relacionados às metrópoles e condições de vida que oferecem. Por exemplo, aqui em São Paulo tem um problema de mobilidade urbana, de moradia, de gente obrigada a morar na rua.
Reforma agrária foi um grande tema. Dez anos atrás, 70% da população estava de acordo. Fernando Henrique perdeu a oportunidade. Então, o Lula entrou à toda, vou fazer, também não fez nada. O próprio MST diminuiu a sua capacidade organizativa, e o governo cooptou de dentro, de cima pra baixo, dividiu o MST com cesta de alimento, Bolsa Família etc. Resultado: o tema saiu do foco. O MST recoloca-o agora, em outros termos – pequena propriedade, segurança alimentar.
Uma questão que pode pegar é o problema da alimentação sadia. Agrotóxicos, comida com veneno. O filme do Silvio Tendler, O veneno está na mesa é uma campanha do MST e dos movimentos por soberania alimentar. As pessoas estão tomando consciência. Na Europa estão relacionando doenças novas, como Alzheimer, aos venenos da alimentação.
A sociedade está vendo também a desigualdade social. Estou voltando agora da China, é um problemão por lá. Uma pobreza no meio rural, e a riqueza, milionários no meio urbano. Eles ainda têm 50% da população rural. Nas pequenas cidades também se vive em condições muito ruins. E os ricos, os riquíssimos cada vez mais ricos.
A questão ambiental também é um problema que o pessoal sente. Hoje, não adianta falar em superar capitalismo, tem que superar o desmonte da Terra, ou da humanidade na Terra, através da problemática ambiental. Esses grandes desastres, maremotos, tsunamis, tudo isso vai acordando.
Um tema que ainda não pegou é a participação na gestão nos conselhos criados pela Constituição em 88 – Conselho da Criança e do Adolescente, conselhos tutelares, conselho de saúde, de idoso, de jovem. Esses conselhos são pessimamente utilizados pelo governo. Nas cidades pequenas, é tudo gente do prefeito e dos seus partidários. Podem ser instrumentos de participação da sociedade nas decisões, mas ainda não existe uma consciência disso.
As redes sociais têm um papel no processo de mobilização política?
A novidade na ação política é exatamente a possibilidade de lançar convites no ar e ver quem vem. A rede é um processo, uma ligação horizontal entre as pessoas em que a comunicação se dá entre todos e em que a adesão a uma proposta se faz por convicção, não por disciplina e ordem. Essa é a diferença.
As redes sociais abrem a possibilidade de jogar propostas e aceita quem se convence por elas. E como tem uma vontade latente de participar, se as propostas cabem no que as pessoas sentem, elas pegam. O que aconteceu no norte da África foi exemplar. Na Tunísia, havia um mal-estar tão grande em relação à ditadura, à corrupção etc, que quando um vendedeor de frutas se imolou, em 2011, foi a gota d’água – as redes sociais se manifestaram e meio mundo veio abaixo. Para manifestação de rua, demonstração coletiva de uma determinada vontade, acho um instrumento espetacular.
Como você vê as novas formas de ação política?
Estou muito engajado na proposta dos Fóruns Sociais Mundiais (FSMs), cujo eixo é uma nova cultura política. Tem uma espécie de slogan – “Outro mundo é possível” – e uma lógica de rede, de horizontalidade. Os fóruns são autogestionados, quem organiza atividade não é uma cúpula. As pessoas falam sobre o que querem, aproveitam o espaço de intercomunicação, horizontal, sem maiores e menores, e através disso podem aprender uns com os outros, avaliar suas próprias atividades, encontrar convergências e lançar novas ações, mais amplas, vencendo as barreiras que às vezes separam os próprios movimentos. O Fórum permite que eles se encontrem e descubram que podem trabalhar junto.
É uma perspectiva que está se realizando nessas manifestações atuais. No mundo árabe foi antiditadura, mas também mais democracia. Na Espanha, é muito nitidamente outra forma de fazer política – estão questionando os partidos, o governo. E nos Estados Unidos, o Occupy Wall Street é inacreditavelmente isso.
O que mais caracteriza a estrutura dos Fóruns Sociais?
Outro item essencial é que a sociedade civil é um ator político, não um simples joguete nas mãos de governos ou partidos. Um ator político autônomo em relação a uns e outros. E atua resistindo, protestando, reivindicando, controlando, fazendo. Falo das diversas organizações da sociedade civil: sindicatos, movimentos sociais, ONGs.
Outra questão diz respeito ao uso das redes sociais, à intercomunicação horizontal, liberdade de expressão e possibilidade de todos terem todas as informações e assumirem o que podem assumir.
Nessa perspectiva, os partidos e os sindicatos teriam que ser totalmente revistos. Os partidos continuam com cúpulas à margem das bases, sem sistemas horizontais. Um partido inteligente criaria mecanismos de intercomunicação horizontal entre seus membros, a mais ampla possível. E mecanismos decisórios também diferentes. No Fórum, temos instâncias organizativas, como o Conselho Internacional, mas não um órgão diretor, um board of directors – este dirige, e o Conselho Internacional simplesmente analisa, propõe e deixa que se faça. Por exemplo, quem organiza um Fórum Social no Egito? Os egípcios. As organizações sociais vão se encontrar, se organizar, distribuir tarefas e fazer. O conselho analisa as propostas que existem pra fazer fóruns e diz: ao que tudo indica, o melhor lugar pra fazer um agora é no Cairo. Mas não diz: vai ser no Cairo. Depende dos egípcios quererem.
Outra coisa: nós percebemos, ali pelas tantas, que não dava pra decidir por voto – a vontade da maioria, que é a forma mais democrática. Quando a maioria decide, às vezes a minoria que perdeu é de 49%, e esses 49%, insatisfeitos, criam outro partido. É típico da esquerda: na Índia, tem o Partido Comunista Chinês, o Partido Comunista Marxista Chinês, que é o maoista, o Partido Comunista Marxista Leninista Chinês, que é albanês. O drama da divisão entre a esquerda decorre do processo decisório. Por isso, adotamos a regra do consenso: há uma decisão a tomar, discute-se, argumenta-se. Se alguém diz que não está de acordo, um em 150 – evidentemente uma pessoa que representa outras –, então volta-se a discutir. Discute, discute, discute, e a uma certa altura, pergunta-se: “todo mundo está de acordo?”. Se ele disser: “não, mas topo que se tome essa decisão, não vou embora”, a decisão será tomada. O valor passa a ser a união e não a vitória. É um raciocínio tão diferente que nós mesmos, no começo, às vezes queríamos votar, porque é muito cansativo. Esse é um segredo que permitiu que o FSM funcionasse durante onze anos e continue funcionando. O valor da união. Não nos dividimos.
A experiência do Fórum Social é muito rica e explodiu mundo afora. Logo depois da Primavera Árabe, os tunisianos disseram: “começou assim, mas depois nós, os filhos do Fórum, entramos nisso com força, com outras metodologias, outros valores.” É o que acontece, por exemplo, em Madri: os Indignados não querem chefia, não querem porta-voz. O Fórum não tem porta-voz. Quando vou fazer as minhas palestras por aí, conto o que sei, não represento ninguém, nem o Fórum propriamente dito.
Novas formas de organização política implicariam em ter redes, funcionando como redes, porque grande parte das redes tem um comando, um gancho – se o gancho cai, a rede se desfaz. O segredo é ter autonomia de todos os membros e um sistema decisório por livre consenso. E criar plenárias, sistemas de discussão em que se possa usar a internet. É impressionante a possibilidade que tem a internet de fazer coisas, e ninguém mandar em ninguém.
Descentralização é um valor?
Descentralização com corresponsabilidade. É preciso abrir espaço para a capacidade de iniciativa e para a experimentação – não se pode autorizar só o que vai dar certo. No Fórum, temos o princípio de atividades autogestionadas. Qualquer participante pode inscrever uma atividade: se aparecem só dois gatos pingados, é porque a proposta era furada. Mas se aparecem cem, ali tem um assunto que pegou. É deixar que a prática, e não a autoridade, determine a verdade. Esse é o pulo do gato, uma mudança essencial.
Outro aspecto: formação das pessoas. É uma coisa que o MST faz esplendidamente, só que baseada exclusivamente em autores marxistas – e não é por aí. Deve ser formação com base na prática, interformação. É uma coisa que o PT abandonou. No início, havia os núcleos do partido, em que o pessoal estudava, mas de repente começou a luta interna pra tomar conta dos núcleos. Então a direção se destaca da massa, que passa a ser manobrada.
Apesar de excessivamente marxistas, os quadros do MST são bem formados. Em Taiwan, onde estive recentemente, encontrei dois jovens que o MST mandou para conhecer a experiência de agricultura familiar, agricultura orgânica etc, pensando já em ir à China depois. Eram dois rapazinhos de extrato popular, extremamente bem formados, que sabiam articular as coisas, falar, se apresentar. Isso é impressionante, bonito de ver.
Como vê as novas gerações vivendo nesse planeta tão pequeno?
Não vejo maiores problemas, se formos capazes de evitar as tendências perversas, antinatureza e antifilecidade humana. Fiquei muito impressionado com a China – um bilhão e quinhentas mil pessoas entrando no esquema do consumismo, portanto carbono, carros, tudo. E apenas laivos de luta contra isso.
Quando passo por um porto no Rio de Janeiro e vejo a quantidade de coisas sendo exportadas e importadas, penso que é preocupante o consumismo e a falta de consciência de que é um instrumento da máquina capitalista, de produção de lucro, e que pode acabar com os recursos naturais. Grande parte dos nossos governantes, Itamaraty à frente, pensando o Brasil como grande potência, tendo o crescimento econômico como grande valor… é preocupante.
Daí a importância de novos partidos, que venham com outras propostas. O Lula dizia: “o cara passou a vida inteira gramando, agora que ele tem possibilidade de comprar um carrozinho vocês vão tirar?” Não pode, é real.
Como é que se enfrenta isso?
Tem que enfrentar com um processo educativo amplo, que use os meios de comunicação. Questionando a publicidade, por criar valores do “ter sempre mais”. A China é toda voltada pra ganhar dinheiro, essa é a perspectiva de vida. Ao mesmo tempo, o que se vê na África é uma tragédia humana. E o que vai a China fazer na África? Comprar terra e botar gente pra produzir, pra eles se alimentarem, porque não têm terra nem água suficientes. São desequilíbrios que não são tratados pelo G20, nem pelas Nações Unidas, e que podem ser desastrosos pro planeta. Estamos numa luta contra o tempo, o relógio. Até que ponto a consciência disso tudo vai penetrar, por exemplo, na China?
Podemos ter esperanças?
Sim, por outro lado, tem coisas bacanas acontecendo. Por exemplo, os criativos culturais. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos uns anos atrás descobriu que 17% dos norte-americanos já vivem de modos diferentes do tradicional, opõem-se ao consumismo, a usar carro pra tudo, querem ser mais do que ter, vivem a solidariedade internacional. São pequenas ilhas naquele imenso país, mas somam cerca de 50 milhões de pessoas.
Fizeram essa pesquisa na Europa, e na França o resultado revelou que 25%, de franceses vivem fora do esquemão consumista. No Japão também, uma porcentagem grande. Aqui no Brasil, há um monte de criativos culturais – gente que não se preocupa com a aparência, com os valores típicos da sociedade capitalista burguesa, e busca outro estilo de vida. O fenômeno denominado criativos culturais está realmente emergindo, e isso precisaria se tornar conhecido. Um partido novo deveria tomar como tarefa da formação de seus militantes divulgar esse fato, e tentar se vincular a esse povo.
São redes, as mais diversas. Por exemplo: há experiências espetaculares, no Brasil e no mundo, sobre o dinheiro. Moeda social. Na Alemanha elas se multiplicam – pouca gente sabe disso. No Brasil, o Paul Singer deu um grande apoio – tem Che, tem Capivara, dezenas de moedas sociais. O mundo das trocas começou há vinte anos em São Paulo e se espalhou pelo Brasil. Isso é novidade: uma outra forma de encarar o dinheiro. E põe o dedo no problema do sistema. Existe na França toda uma mobilização em torno de novas formas de considerar a riqueza – o que é riqueza? Questionamento do PIB, com o FIB, a Felicidade Interna Bruta lá do Butão. Essas coisas estão circulando, o problema é que não são conhecidas. A mídia não informa.
Como vê o papel da mídia?
A mídia funciona na base da publicidade, não da informação. Publica informação sobre aquilo que dá anunciante – e pra isso fica no mais baixo padrão. Precisava de um partido que tivesse sua própria mídia, que usasse a mídia de forma diferente.
E o papel dos partidos, hoje?
Os partidos têm um papel muito importante, por isso é saudável a criação de novos partidos, com outra perspectiva. Assim como a empresa tem o lucro no seu DNA – a empresa que não queira ter lucro morre, não tem jeito –, partido que não lute pelo poder morre, como partido. Mas é possível ter um partido de outra natureza – horizontal, que não lute pelo poder. Que seja pluripartidário, com uma espécie de dupla filiação – gente de diferentes partidos e que também participe de uma rede partidária, como acontece na prática.
Um partido em cujo DNA não estaria a tomada do poder?
Sim, como o PT era, no início – virou eleitoreiro depois. Um partido de formação, de conscientização. E quem entra nesse partido? Gente de outros partidos que, neles, luta pra ser eleita. Essa seria uma novidade: uma dupla filiação partidária. A Constituiçao obriga a ter filiação partidária pra poder ser candidato, mas isso pode mudar, com candidatos avulsos. Existe na França. Não é um louco que aparece sozinho e se propõe, mas se 300 cidadãos disserem: apoiamos esse cara para o cargo de vereador, ele pode se apresentar e ser eleito.
Mas até mudar a Constituição para ter candidato avulso vai demorar, porque eles têm medo. Medo da verdade, medo de perder o poder. Têm de ter sempre razão, não podem errar, aceitar o erro. Aceitar o erro! É um salto qualitativo na postura da pessoa. Errei, não sabia, calculei mal, me comportei mal. Quando você toma uma atitude desse tipo, acende a luzinha para um monte de gente. “É possível não lutar somente pela própria afirmação?” Já vivi muita experiência desse tipo: num quadro que é de luta pelo poder, ao aceitar que errou você reúne mais adeptos do que se tivesse afirmado a sua posição. Falei disso numa palestra em Taiwan e um professor que estava moderando a conferência falou que é Taoísmo – vou ter que estudar o que é isso! O poder do não poder. Quem fazia muito esse jogo era o Vaclav Havel (1936-2011), poeta, dramaturgo, que separou a Tchecoslováquia da Eslováquia. Quer dizer, tem poder quem tem autoridade moral, e não quem luta pelo poder. Essa autoridade moral é mais consistente e atraente, principalmente para o jovem. O mesmo tipo de filosofia de Gandhi, uma forma de não violência. Um modo novo de atuação política. Vivemos cem anos de esquerda sob a égide do leninismo, com quadros disciplinados, estruturas verticalizadas. Então, essa é a mudança.
Por Chico Whitaker, entrevistado por Inês Castilho, editora da coluna Outra Política
Liberdade, união, igualdade, autonomia, possibilidade de errar. Com a experiência de quem ajudou a criar o Fórum Social Mundial – cuja 12ª edição termina neste sábado, 30, na Tunísia –, e uma visão que atravessa décadas de participação em movimentos políticos, o arquiteto e ativista Chico Whitaker fala sobre os valores que sustentam uma nova cultura política.
“Novas formas de organização dos que querem mudar o mundo implicam ter redes funcionando, autonomia de todos os membros e um sistema decisório por livre consenso”, diz ele. “A rede é um processo, uma ligação horizontal entre as pessoas em que a comunicação se dá entre todos e a adesão a uma proposta se faz por convicção — não por hierarquia, disciplina ou ordem”, diz. “A novidade é exatamente a possibilidade de lançar convites no ar e ver quem vem.”
Para Chico, a cultura política que os Fóruns Sociais expressam é anterior a eles e está também presente em fenômenos de grande repercussão global, como a Primavera Árabe, e movimentos como os dos Indignados e o “Occupy”.
Ele atribui às antigas disputas por maiorias a responsabilidade pela divisão das organizações de esquerda. “A vontade da maioria é a forma mais democrática. Só que, quando esta decide, às vezes a minoria que perdeu é de 49%, e esses 49% criam outro partido. Como alternativa, adotamos a regra do consenso: o valor passa a ser a união, e não a vitória. Isso permitiu que o FSM continuasse funcionando. Não nos dividimos.”
Outra novidade dessa postura política é a possibilidade de errar – o que os psicanalistas talvez chamassem de aceitação da falta inerente ao humano. Noa Fóruns, isso se deu pela abertura à experimentação. “Não se pode autorizar só o que vai dar certo”, diz Chico. “Aceitar o erro é um salto qualitativo na postura da pessoa. Num quadro de luta pelo poder, ao aceitar que errou você ganha mais adeptos do que se tivesse afirmado a sua posição.” A esquerda viveu cem anos sob a égide do leninismo, com quadros disciplinados e estruturas verticalizadas – lembra Chico. O que estamos vivendo “são grandes mudanças.”
O novo diálogo é parte do estudo Política Cidadã, que o Instituto Ideafix produziu por encomenda do IDS (Instuto Democracia e Sustentabilidade) e que o site publica na seção especial “Outra Política“. A seguir, a entrevista – cuja edição não foi revisada pelo autor.
Como você vê a participação política do brasileiro?
Passou por etapas, e isso significa reaprendizados. E também por muitos preconceitos, plantados pela propaganda. Como existe um certo interesse de que as pessoas não se metam em política, criou-se, subliminarmente, a ideia de que política é coisa em que a gente não deve se meter, que divide as famílias.
Essas ideias vão sendo vencidas pela própria ação da sociedade. Com o processo das Diretas Já, seguido da Constituinte, a ideia de que a política é parte do cotidiano foi ganhando espaço. Durante a ditadura, participar da política era arriscado, a moçada viveu quinze anos sem poder falar disso. Mas hoje, tudo que é relativo à busca coletiva de soluções está crescendo no Brasil.
Quais temas mobilizam a sociedade brasileira, a seu ver?
Um tema que está mobilizando atualmente é o da corrupção. Não que haja mais corrupção, pelo contrário, mas está aparecendo mais. A Polícia Federal está mais eficiente e há liberdade para falar das coisas – então a imprensa, que tem uma raivinha, aproveita. Além disso, são temas relacionados às metrópoles e condições de vida que oferecem. Por exemplo, aqui em São Paulo tem um problema de mobilidade urbana, de moradia, de gente obrigada a morar na rua.
Reforma agrária foi um grande tema. Dez anos atrás, 70% da população estava de acordo. Fernando Henrique perdeu a oportunidade. Então, o Lula entrou à toda, vou fazer, também não fez nada. O próprio MST diminuiu a sua capacidade organizativa, e o governo cooptou de dentro, de cima pra baixo, dividiu o MST com cesta de alimento, Bolsa Família etc. Resultado: o tema saiu do foco. O MST recoloca-o agora, em outros termos – pequena propriedade, segurança alimentar.
Uma questão que pode pegar é o problema da alimentação sadia. Agrotóxicos, comida com veneno. O filme do Silvio Tendler, O veneno está na mesa é uma campanha do MST e dos movimentos por soberania alimentar. As pessoas estão tomando consciência. Na Europa estão relacionando doenças novas, como Alzheimer, aos venenos da alimentação.
A sociedade está vendo também a desigualdade social. Estou voltando agora da China, é um problemão por lá. Uma pobreza no meio rural, e a riqueza, milionários no meio urbano. Eles ainda têm 50% da população rural. Nas pequenas cidades também se vive em condições muito ruins. E os ricos, os riquíssimos cada vez mais ricos.
A questão ambiental também é um problema que o pessoal sente. Hoje, não adianta falar em superar capitalismo, tem que superar o desmonte da Terra, ou da humanidade na Terra, através da problemática ambiental. Esses grandes desastres, maremotos, tsunamis, tudo isso vai acordando.
Um tema que ainda não pegou é a participação na gestão nos conselhos criados pela Constituição em 88 – Conselho da Criança e do Adolescente, conselhos tutelares, conselho de saúde, de idoso, de jovem. Esses conselhos são pessimamente utilizados pelo governo. Nas cidades pequenas, é tudo gente do prefeito e dos seus partidários. Podem ser instrumentos de participação da sociedade nas decisões, mas ainda não existe uma consciência disso.
As redes sociais têm um papel no processo de mobilização política?
A novidade na ação política é exatamente a possibilidade de lançar convites no ar e ver quem vem. A rede é um processo, uma ligação horizontal entre as pessoas em que a comunicação se dá entre todos e em que a adesão a uma proposta se faz por convicção, não por disciplina e ordem. Essa é a diferença.As redes sociais abrem a possibilidade de jogar propostas e aceita quem se convence por elas. E como tem uma vontade latente de participar, se as propostas cabem no que as pessoas sentem, elas pegam. O que aconteceu no norte da África foi exemplar. Na Tunísia, havia um mal-estar tão grande em relação à ditadura, à corrupção etc, que quando um vendedeor de frutas se imolou, em 2011, foi a gota d’água – as redes sociais se manifestaram e meio mundo veio abaixo. Para manifestação de rua, demonstração coletiva de uma determinada vontade, acho um instrumento espetacular.
Como você vê as novas formas de ação política?
Estou muito engajado na proposta dos Fóruns Sociais Mundiais (FSMs), cujo eixo é uma nova cultura política. Tem uma espécie de slogan – “Outro mundo é possível” – e uma lógica de rede, de horizontalidade. Os fóruns são autogestionados, quem organiza atividade não é uma cúpula. As pessoas falam sobre o que querem, aproveitam o espaço de intercomunicação, horizontal, sem maiores e menores, e através disso podem aprender uns com os outros, avaliar suas próprias atividades, encontrar convergências e lançar novas ações, mais amplas, vencendo as barreiras que às vezes separam os próprios movimentos. O Fórum permite que eles se encontrem e descubram que podem trabalhar junto.
É uma perspectiva que está se realizando nessas manifestações atuais. No mundo árabe foi antiditadura, mas também mais democracia. Na Espanha, é muito nitidamente outra forma de fazer política – estão questionando os partidos, o governo. E nos Estados Unidos, o Occupy Wall Street é inacreditavelmente isso.
O que mais caracteriza a estrutura dos Fóruns Sociais?
Outro item essencial é que a sociedade civil é um ator político, não um simples joguete nas mãos de governos ou partidos. Um ator político autônomo em relação a uns e outros. E atua resistindo, protestando, reivindicando, controlando, fazendo. Falo das diversas organizações da sociedade civil: sindicatos, movimentos sociais, ONGs.
Outra questão diz respeito ao uso das redes sociais, à intercomunicação horizontal, liberdade de expressão e possibilidade de todos terem todas as informações e assumirem o que podem assumir.
Nessa perspectiva, os partidos e os sindicatos teriam que ser totalmente revistos. Os partidos continuam com cúpulas à margem das bases, sem sistemas horizontais. Um partido inteligente criaria mecanismos de intercomunicação horizontal entre seus membros, a mais ampla possível. E mecanismos decisórios também diferentes. No Fórum, temos instâncias organizativas, como o Conselho Internacional, mas não um órgão diretor, um board of directors – este dirige, e o Conselho Internacional simplesmente analisa, propõe e deixa que se faça. Por exemplo, quem organiza um Fórum Social no Egito? Os egípcios. As organizações sociais vão se encontrar, se organizar, distribuir tarefas e fazer. O conselho analisa as propostas que existem pra fazer fóruns e diz: ao que tudo indica, o melhor lugar pra fazer um agora é no Cairo. Mas não diz: vai ser no Cairo. Depende dos egípcios quererem.
Outra coisa: nós percebemos, ali pelas tantas, que não dava pra decidir por voto – a vontade da maioria, que é a forma mais democrática. Quando a maioria decide, às vezes a minoria que perdeu é de 49%, e esses 49%, insatisfeitos, criam outro partido. É típico da esquerda: na Índia, tem o Partido Comunista Chinês, o Partido Comunista Marxista Chinês, que é o maoista, o Partido Comunista Marxista Leninista Chinês, que é albanês. O drama da divisão entre a esquerda decorre do processo decisório. Por isso, adotamos a regra do consenso: há uma decisão a tomar, discute-se, argumenta-se. Se alguém diz que não está de acordo, um em 150 – evidentemente uma pessoa que representa outras –, então volta-se a discutir. Discute, discute, discute, e a uma certa altura, pergunta-se: “todo mundo está de acordo?”. Se ele disser: “não, mas topo que se tome essa decisão, não vou embora”, a decisão será tomada. O valor passa a ser a união e não a vitória. É um raciocínio tão diferente que nós mesmos, no começo, às vezes queríamos votar, porque é muito cansativo. Esse é um segredo que permitiu que o FSM funcionasse durante onze anos e continue funcionando. O valor da união. Não nos dividimos.
A experiência do Fórum Social é muito rica e explodiu mundo afora. Logo depois da Primavera Árabe, os tunisianos disseram: “começou assim, mas depois nós, os filhos do Fórum, entramos nisso com força, com outras metodologias, outros valores.” É o que acontece, por exemplo, em Madri: os Indignados não querem chefia, não querem porta-voz. O Fórum não tem porta-voz. Quando vou fazer as minhas palestras por aí, conto o que sei, não represento ninguém, nem o Fórum propriamente dito.
Novas formas de organização política implicariam em ter redes, funcionando como redes, porque grande parte das redes tem um comando, um gancho – se o gancho cai, a rede se desfaz. O segredo é ter autonomia de todos os membros e um sistema decisório por livre consenso. E criar plenárias, sistemas de discussão em que se possa usar a internet. É impressionante a possibilidade que tem a internet de fazer coisas, e ninguém mandar em ninguém.
Descentralização é um valor?
Descentralização com corresponsabilidade. É preciso abrir espaço para a capacidade de iniciativa e para a experimentação – não se pode autorizar só o que vai dar certo. No Fórum, temos o princípio de atividades autogestionadas. Qualquer participante pode inscrever uma atividade: se aparecem só dois gatos pingados, é porque a proposta era furada. Mas se aparecem cem, ali tem um assunto que pegou. É deixar que a prática, e não a autoridade, determine a verdade. Esse é o pulo do gato, uma mudança essencial.
Outro aspecto: formação das pessoas. É uma coisa que o MST faz esplendidamente, só que baseada exclusivamente em autores marxistas – e não é por aí. Deve ser formação com base na prática, interformação. É uma coisa que o PT abandonou. No início, havia os núcleos do partido, em que o pessoal estudava, mas de repente começou a luta interna pra tomar conta dos núcleos. Então a direção se destaca da massa, que passa a ser manobrada.
Apesar de excessivamente marxistas, os quadros do MST são bem formados. Em Taiwan, onde estive recentemente, encontrei dois jovens que o MST mandou para conhecer a experiência de agricultura familiar, agricultura orgânica etc, pensando já em ir à China depois. Eram dois rapazinhos de extrato popular, extremamente bem formados, que sabiam articular as coisas, falar, se apresentar. Isso é impressionante, bonito de ver.
Como vê as novas gerações vivendo nesse planeta tão pequeno?
Não vejo maiores problemas, se formos capazes de evitar as tendências perversas, antinatureza e antifilecidade humana. Fiquei muito impressionado com a China – um bilhão e quinhentas mil pessoas entrando no esquema do consumismo, portanto carbono, carros, tudo. E apenas laivos de luta contra isso.
Quando passo por um porto no Rio de Janeiro e vejo a quantidade de coisas sendo exportadas e importadas, penso que é preocupante o consumismo e a falta de consciência de que é um instrumento da máquina capitalista, de produção de lucro, e que pode acabar com os recursos naturais. Grande parte dos nossos governantes, Itamaraty à frente, pensando o Brasil como grande potência, tendo o crescimento econômico como grande valor… é preocupante.
Daí a importância de novos partidos, que venham com outras propostas. O Lula dizia: “o cara passou a vida inteira gramando, agora que ele tem possibilidade de comprar um carrozinho vocês vão tirar?” Não pode, é real.
Como é que se enfrenta isso?
Tem que enfrentar com um processo educativo amplo, que use os meios de comunicação. Questionando a publicidade, por criar valores do “ter sempre mais”. A China é toda voltada pra ganhar dinheiro, essa é a perspectiva de vida. Ao mesmo tempo, o que se vê na África é uma tragédia humana. E o que vai a China fazer na África? Comprar terra e botar gente pra produzir, pra eles se alimentarem, porque não têm terra nem água suficientes. São desequilíbrios que não são tratados pelo G20, nem pelas Nações Unidas, e que podem ser desastrosos pro planeta. Estamos numa luta contra o tempo, o relógio. Até que ponto a consciência disso tudo vai penetrar, por exemplo, na China?
Podemos ter esperanças?
Sim, por outro lado, tem coisas bacanas acontecendo. Por exemplo, os criativos culturais. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos uns anos atrás descobriu que 17% dos norte-americanos já vivem de modos diferentes do tradicional, opõem-se ao consumismo, a usar carro pra tudo, querem ser mais do que ter, vivem a solidariedade internacional. São pequenas ilhas naquele imenso país, mas somam cerca de 50 milhões de pessoas.
Fizeram essa pesquisa na Europa, e na França o resultado revelou que 25%, de franceses vivem fora do esquemão consumista. No Japão também, uma porcentagem grande. Aqui no Brasil, há um monte de criativos culturais – gente que não se preocupa com a aparência, com os valores típicos da sociedade capitalista burguesa, e busca outro estilo de vida. O fenômeno denominado criativos culturais está realmente emergindo, e isso precisaria se tornar conhecido. Um partido novo deveria tomar como tarefa da formação de seus militantes divulgar esse fato, e tentar se vincular a esse povo.
São redes, as mais diversas. Por exemplo: há experiências espetaculares, no Brasil e no mundo, sobre o dinheiro. Moeda social. Na Alemanha elas se multiplicam – pouca gente sabe disso. No Brasil, o Paul Singer deu um grande apoio – tem Che, tem Capivara, dezenas de moedas sociais. O mundo das trocas começou há vinte anos em São Paulo e se espalhou pelo Brasil. Isso é novidade: uma outra forma de encarar o dinheiro. E põe o dedo no problema do sistema. Existe na França toda uma mobilização em torno de novas formas de considerar a riqueza – o que é riqueza? Questionamento do PIB, com o FIB, a Felicidade Interna Bruta lá do Butão. Essas coisas estão circulando, o problema é que não são conhecidas. A mídia não informa.
Como vê o papel da mídia?
A mídia funciona na base da publicidade, não da informação. Publica informação sobre aquilo que dá anunciante – e pra isso fica no mais baixo padrão. Precisava de um partido que tivesse sua própria mídia, que usasse a mídia de forma diferente.
E o papel dos partidos, hoje?
Os partidos têm um papel muito importante, por isso é saudável a criação de novos partidos, com outra perspectiva. Assim como a empresa tem o lucro no seu DNA – a empresa que não queira ter lucro morre, não tem jeito –, partido que não lute pelo poder morre, como partido. Mas é possível ter um partido de outra natureza – horizontal, que não lute pelo poder. Que seja pluripartidário, com uma espécie de dupla filiação – gente de diferentes partidos e que também participe de uma rede partidária, como acontece na prática.
Um partido em cujo DNA não estaria a tomada do poder?
Sim, como o PT era, no início – virou eleitoreiro depois. Um partido de formação, de conscientização. E quem entra nesse partido? Gente de outros partidos que, neles, luta pra ser eleita. Essa seria uma novidade: uma dupla filiação partidária. A Constituiçao obriga a ter filiação partidária pra poder ser candidato, mas isso pode mudar, com candidatos avulsos. Existe na França. Não é um louco que aparece sozinho e se propõe, mas se 300 cidadãos disserem: apoiamos esse cara para o cargo de vereador, ele pode se apresentar e ser eleito.
Mas até mudar a Constituição para ter candidato avulso vai demorar, porque eles têm medo. Medo da verdade, medo de perder o poder. Têm de ter sempre razão, não podem errar, aceitar o erro. Aceitar o erro! É um salto qualitativo na postura da pessoa. Errei, não sabia, calculei mal, me comportei mal. Quando você toma uma atitude desse tipo, acende a luzinha para um monte de gente. “É possível não lutar somente pela própria afirmação?” Já vivi muita experiência desse tipo: num quadro que é de luta pelo poder, ao aceitar que errou você reúne mais adeptos do que se tivesse afirmado a sua posição. Falei disso numa palestra em Taiwan e um professor que estava moderando a conferência falou que é Taoísmo – vou ter que estudar o que é isso! O poder do não poder. Quem fazia muito esse jogo era o Vaclav Havel (1936-2011), poeta, dramaturgo, que separou a Tchecoslováquia da Eslováquia. Quer dizer, tem poder quem tem autoridade moral, e não quem luta pelo poder. Essa autoridade moral é mais consistente e atraente, principalmente para o jovem. O mesmo tipo de filosofia de Gandhi, uma forma de não violência. Um modo novo de atuação política. Vivemos cem anos de esquerda sob a égide do leninismo, com quadros disciplinados, estruturas verticalizadas. Então, essa é a mudança.