Assim como a relação do Estado com o capital é de cumplicidade orgânica, “a relação do Judiciário com os movimentos sociais e as organizações populares é de repressão estrutural”, denuncia Roberto Efrem Filho em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Práticas de controle social brutais são parte do trabalho de dominação, embora a criminalização dos movimentos sociais não seja exclusividade brasileira, nem somente do Judiciário. Essa criminalização “é uma estratégia de deslegitimação e controle dos sujeitos dissidentes e foi historicamente reapropriada pelos dinamismos capitalistas como um de seus sustentáculos”.
Ele afirma: “A quantidade imensurável de produtos da indústria cultural relacionados à exploração midiática do crime é um signo da porosidade da cultura à ética punitivista característica das instituições coercitivas”. Efrem Filho acentua que um dos exemplos do comprometimento estatal brasileiro com estratégias arcaicas de subalternização é o fato de membros da alta cúpula do Estado (inclusive no interior do Supremo Tribunal Federal) serem grandes proprietários de terras.
Roberto Efrem Filho é professor da Universidade Federal da Paraíba – UFPB e conselheiro da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos e do Instituto PAPAI – Organização feminista. Cursou graduação e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE com a dissertação Veja e a criminalização da política: mídia e direito entre a ideologia do consenso e o estranhamento do mundo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em outra oportunidade, você afirmou que a criminalização dos movimentos sociais no Brasil é uma prática que atravessa o Judiciário? Por quê?
Roberto Efrem Filho – A criminalização dos movimentos sociais não constitui uma especificidade brasileira, tampouco do Judiciário. Ela se realiza como uma estratégia de deslegitimação e controle dos sujeitos dissidentes e foi historicamente reapropriada pelos dinamismos capitalistas como um de seus sustentáculos. A tradição intelectual marxista insiste na centralidade do trabalho para o desenvolvimento de análises acerca da realidade que vivenciamos e construímos. Mas é preciso amadurecer a percepção de que a centralidade do trabalho – a qual eu defendo, sobretudo porque não há como desvendar os móveis do capital sem conhecer as contradições que lhe movimentam – requisitou a realocação estrutural do crime. Quero dizer que a centralidade do trabalho presta contas à criminalização das classes que vivem do trabalho e dos demais grupos sociais subalternos e que o controle sobre o espaço-tempo da produção nunca abriu mão – pelo contrário, demandou – a presença da coerção externa.
A organização do modo de produção capitalista inaugurou uma eficiência sem precedentes históricos na consumação do controle. Ellen Meiksins Wood percebeu esse fenômeno e o discutiu em textos que no Brasil foram publicados pela editora Boitempo num livro chamado Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Ela afirma bastante habilidosamente que o capitalismo iniciou a desnecessidade de recorrer a estratagemas outros que não à própria produção para extrair dos trabalhadores o excedente do trabalho. No gesto mais cotidiano da produção, a mais-valia percorre seus caminhos sobre os corpos dos trabalhadores sem requisitar de meios secundários de extração, como a cobrança de tributos ou o emprego da força física. Mas Wood também nota que ao Estado foi transferido o monopólio – ou o discurso do monopólio – da violência (autointitulada “legítima”) que os proprietários dos meios de produção já não mais precisavam exercer tão diretamente.
Economia da criminalização
O profundo controle político exercido no interior da produção articulou-se, portanto, ao controle estatal externo, responsável por arcar tanto com os sujeitos não inseridos no espaço produtivo – o “exército de mão de obra de reserva”, segundo o marxismo, que bem poderia se relacionar com o conceito de “delinquência” trabalhado por Michel Foucault – como com aqueles sujeitos que resolvessem ou fossem levados a contestar as composições da “fábrica”. A criminalização desses sujeitos é o que aciona o gatilho do emprego da violência estatal, seja ela mais ou menos simbólica, como diria Pierre Bourdieu, ou mais ou menos material.
A emergência histórica do que se chamou de Estado de Direito reordenou a divisão social do trabalho de dominação de tal maneira que, sob o signo das “liberdades individuais” e da “segurança jurídica”, a tarefa do “controle legítimo” sofreu uma redistribuição nos interstícios da própria estrutura estatal. Orquestrar a noção de crime passou a competir a um organismo judiciário que se quer “independente” e distanciado das instâncias “políticas” – como se o próprio Judiciário não fosse uma delas.
Decerto, as negociações entre o Judiciário e o crime são mais complexas e explicações assim correm o evidente risco de soar demasiadamente esquemáticas. É importante compreender, no entanto, que a criminalização concerne a uma espécie de economia – de fato, segmentos do crime organizado constituem verdadeiras corporações transnacionais – que responde a uma seletividade punitiva. Alguns gestos são criminalizáveis, outros não e nada existe de “óbvio” na escolha do que receberá ou não a tipificação penal. A política relacionada às drogas em nosso país é um exemplo do que estou tentando discutir. O capital se esgueira através dos mais diversos caminhos e a legalidade não representa um requisito para a sua reprodução: diversas substâncias psicoativas permanecem criminalizadas porque sua circulação nos meandros do crime é mais lucrativa. O que leva o uso da maconha a ser crime num país em que o consumo do álcool é largamente incentivado pela indústria cultural? Isso apesar dos vínculos explícitos do consumo do álcool com casos de violência doméstica, acidentes de trânsito etc.?
Parece estranho, à primeira vista, relacionar essas questões com o debate a respeito da criminalização dos movimentos sociais. Mas, em verdade, há conexões inescapáveis entre tudo que tangencia o crime e a criminalização. Os movimentos sociais são de diferentes maneiras mais selecionáveis do que outros sujeitos para constar no rol dos possíveis réus. Por que eles são sujeitos mais predispostos a cometer crimes? Não. Mas porque o crime é um construto histórico bem mais tendente a se sobrepor sobre aqueles sujeitos que contestam as estruturas sociais que o legitimam.
IHU On-Line – Como se daria a inserção do Judiciário nessa divisão social do trabalho de dominação?
Roberto Efrem Filho – A participação do poder Judiciário nesse processo varia de acordo, por exemplo, com a necessidade crescente ou decrescente do apelo ao crime com vistas à garantia do controle. Em períodos de refluxo da hegemonia, em que os consensos de que falou Antônio Gramsci já não se demonstram suficientes para subsidiar os interesses das classes e dos grupos sociais dirigentes, a criminalização judicial emerge no cenário político com maior voracidade. Mas o discurso de ordem próprio aos mecanismos judiciais não se circunscreve a esses instantes extremos em que a “violência legítima” é convocada à boca de cena. Ele é emprestado ao cotidiano da própria fabricação dos consensos.
A quantidade imensurável de produtos da indústria cultural relacionados à exploração midiática do crime é um signo da porosidade da cultura à ética punitivista característica das instituições coercitivas. Fredric Jameson costuma dizer que o espaço-tempo do capitalismo tardio – este estágio do capitalismo que nossas gerações vivenciam – experimenta uma simbiose inédita entre cultura e mercado. Arrisco dizer que o crime tem se tornado uma mercadoria cultural privilegiada, cuja circulação sem precedentes transita dos filmes de Hollywood e das séries da Fox aos programas policialescos locais que invadem os aparelhos de televisão diuturnamente. Estamos sempre à caça do próximo inimigo, “o criminoso” – esta entidade quase metafísica responsável por inaugurar entre nós todos os males de uma caixa de Pandora “pós-moderna” – e que, se hoje pode ser o vilão da novela das oito (ainda há uma novela das oito?), amanhã pode ser o estudante da Universidade de São Paulo que protesta contra a inserção da polícia no ambiente acadêmico ou o sem-terra que ocupa as terras griladas pelos representantes nativos de alguma grande multinacional. São (ou somos) os neoterroristas do horário nobre.
Na realidade brasileira, entretanto, a participação do Judiciário nessa divisão do trabalho de dominação se arquiteta sobre uma conivência não rara com práticas extremamente brutais de controle social. Tenho sustentado essa tese através do respaldo teórico proporcionado por Florestan Fernandes e seus debates acerca do capitalismo dependente. A dinâmica do controle própria às instituições modernas convive entre nós – sim, mesmo nas primeiras décadas do século XXI – com estratégias caracteristicamente arcaicas de emprego da violência em nome da contenção dos indesejáveis. Trata-se da arcaização do moderno e da modernização do arcaico de que falou Fernandes. Estudamos casos emblemáticos de criminalização judicial de trabalhadores rurais sem terra que se realizam em contextos crudelíssimos de violência. Tais casos contam comumente com o envolvimento de milícias rurais armadas ou membros de grupos de extermínio. Os contextos de violência, no entanto, costumam ser filtrados pelas abstrações judiciais a partir do instante em que o “sem-terra” é anunciado no processo e sua deslegitimação, como vítima ou como réu, passa a influenciar mais ou menos explicitamente nas decisões judiciais.
IHU On-Line – Isso significa que o Poder Judiciário brasileiro responde a uma lógica específica?
Roberto Efrem Filho – Sim, o Estado brasileiro se movimenta sob uma lógica específica, como ocorre com os Estados latino-americanos em geral. Se as expressões centrais do modo de produção capitalista exigiram divisões mais bem delineadas dos papéis de dominação, entre nós certos “cuidados” nunca foram completamente empreendidos. Nós temos membros da alta cúpula do Estado – inclusive no interior do Supremo Tribunal Federal – que são grandes proprietários de terras. Esse é apenas um exemplo dos comprometimentos do Estado brasileiro com estratégias arcaicas de subalternização. A reforma agrária se encontra, no Brasil, estruturalmente impossibilitada – o que de modo algum retira do atual governo a responsabilidade por realizá-la, embora não o venha fazendo, como não o fez o governo anterior. Mas no Judiciário, em especial, ela se depara com uma trincheira colossal: a “produtividade” é interpretada em um sentido estritamente proprietarístico, não importando se os índices produtivos alcançados se valem de devastações ambientais ou de violações a direitos trabalhistas e de acesso a terra e ao território.
Entendemos, no campo da assessoria jurídica popular, que a produtividade que se sustenta sobre a violência constitui uma produtividade viciada, nula em efeitos jurídicos e que, sendo assim, não pode impedir a destinação de terras à reforma agrária. Essa tese, entretanto, por mais óbvia que nos pareça, decai diante dos comprometimentos de que falei anteriormente. Um Ministro latifundiário decidirá sobre o sentido da “função social da propriedade”: é flagrante demais. Não quero dizer com isso que quaisquer dos outros ministros seriam “imparciais”. Não acredito nessas abstrações utilizadas pelo direito apenas para justificar sua própria relevância e dissimular seu pertencimento a relações de poder. Quero somente notar o modo como nos construímos historicamente através de flagrâncias e como isso nos conduz a experiências de controle social ainda mais cruéis.
Novos contornos democráticos
Mas a lógica específica que nos atravessa se torna ainda mais complexa a partir do momento em que percebemos que o Judiciário que manobra os mecanismos e a retórica do controle também é o Judiciário que emerge como refúgio para o reconhecimento de direitos imprescindíveis a determinados grupos sociais. A decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade dos efeitos jurídicos das uniões entre pessoas do mesmo sexo é certamente emblemática. De fato, tem sido no Judiciário que diversas pautas políticas do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros são acolhidas. Isso, num cenário social de violências brutais contra LGBT, de rechaço às iniciativas legislativas que intencionam reconhecer os direitos dessa comunidade e de uma ofensiva contundente de setores religiosos contra ela. Diante da impossibilidade de avançar na conquista de direitos junto ao Legislativo, o Movimento LGBT vem recorrendo, creio que legitimamente, ao Judiciário, mas isso também acontece com outros grupos.
Alguns intelectuais têm diagnosticado esse fenômeno como uma das dimensões do que eles chamam de “judicialização da política” e de “politização do judiciário”, algo que estaria ocorrendo nos “Estados Democráticos de Direito” e que diria dos novos contornos da “democracia”. Não discuto nesses termos, embora reconheça a necessidade de conhecimento dessas teses, porque discordo de alguns dos seus pressupostos – a separação original entre direito e política é um deles, o de que vivenciamos um “Estado Democrático”, outro. Parece-me que o avanço do Judiciário – inclusive o relativo à conquista de direitos – sobre temáticas que a priori competiriam ao Legislativo responde a uma estratégia peculiar de feitura da política e não a uma negação ou a um afastamento dela.
IHU On-Line – Como avaliar então a coexistência de um Judiciário destinado ao controle e de um Judiciário garantidor de direitos?
Roberto Efrem Filho – O reconhecimento de direitos pelo Judiciário se relaciona dialeticamente com o exercício do controle. Não são práticas apartadas, portanto. O Judiciário não reconhece direitos sem, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, definir as fronteiras desses direitos, sem modelar os sujeitos que realizarão esses direitos. É o que ocorre com a decisão do STF relativa à união entre pessoas do mesmo sexo. Ali, no reconhecimento de direitos de casais homossexuais, persiste uma compreensão heteronormativa de família e afeto. O voto histórico de Ayres Britto – que, de certo, nos agradou imensamente – carrega diversas referências a modelos tradicionais de família, sobretudo porque o que subjaz todo o debate jurídico é a possibilidade de “equiparação”. Os “inequiparáveis”, entretanto, os sujeitos cujos relacionamentos contestam aqueles modelos, que não recepcionam, por exemplo, a monogamia ou pactos patrimonialistas de convivência, restam mais uma vez deslegitimados, só que agora pelo próprio discurso estatal concessor de direitos. Judith Butler nota esse processo num ensaio que, no Brasil, foi publicado pelos Cadernos Pagu, da Universidade Estadual de Campinas, com o título “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”
O argumento cerne de Butler é o de que não é possível simplesmente ser contrário ou favorável ao “casamento gay” porque uma tomada de posição exclusivista recairia numa minimização da complexidade da questão. Eu diria que se trata de uma complexidade “contraditória” – embora desconfie que Butler não escolhesse essa expressão – e que, portanto, exige uma tomada de posição dialética que se estende a parte significativa da relação dos movimentos sociais e das organizações populares com o Judiciário. Não é possível ser contrário, nas condições atuais, ao reconhecimento judicial dos direitos de LGBT, ainda que isso implique em controle, ao tempo em que não é possível ser favorável aos termos em que a discussão tem sido posta. Isso, é claro, não implica em inércia, numa fuga à decisão ou num não posicionamento. Implica, mais complexamente, numa tomada de posição política que se resumirá a um “sim, sou favorável”, é verdade, mas que se encontra resistente e problematizada em sua gênese.
Criminalização da homofobia
De fato, de um ponto de vista “pragmático”, isso diria muito pouco. Mas é de estratégia e tática que se está falando, não de mera pragmática. O reconhecimento judicial de direitos de homossexuais num país como o nosso – em que um LGBT é assassinado por motivos homofóbicos a cada 36 horas, como confirmam os dados apresentados pelo Grupo Gay da Bahia – é algo de uma potencialidade transformadora indescritível. Sobretudo se consideramos todos os entraves presentes no Legislativo contra o projeto de lei que pretende criminalizar a homofobia, o PL 122/2006. Num contexto histórico de expansão exasperada das criminalizações, em que a ética punitivista se revigora diuturnamente, a recusa do Estado em criminalizar a homofobia é, no mínimo, sociologicamente interessante. Claro, a pauta da criminalização da homofobia indica a penetração daquela ética punitivista no próprio Movimento LGBT. Claro, no campo do crime e da criminalização, os sujeitos oprimidos só se movimentam muito limitadamente, quase sem capacidade de manobra. Porém, a aversão colossal dos setores conservadores a essa criminalização específica parece sugerir que o projeto de lei em questão, apesar de se inserir numa normatividade que nos é adversa, transita contraditoriamente sobre nossas necessidades políticas, requisitando, enfim, de nossa parte, mais uma tomada de posição dialética.
IHU On-Line – A relação do poder Judiciário com os movimentos sociais se daria, então, em meio a essas contradições?
Roberto Efrem Filho – É preciso ser bastante cuidadoso no uso da palavra “contradição” para que ela não se torne uma justificativa inexorável dos limites que nós, por conforto teórico ou dificuldade política, não conseguimos superar. Seu emprego abusivo tende a demolir as fronteiras entre “dialética” e “relativismo”, descaracterizando, assim, a própria dialética e possibilitando consequências indesejáveis para as classes e os grupos sociais subalternos. A relação do Judiciário com os movimentos sociais e as organizações populares é de repressão estrutural, assim como a relação do Estado com o capital é de cumplicidade orgânica – e István Mészáros corajosamente anuncia isso num período em que qualquer afirmação desse tipo terminaria sendo acusada de “simplismo esquerdista”. Sob certas condições bastante excepcionais, contudo, como ocorre com a relação do Judiciário brasileiro com as pautas do Movimento LGBT, contradições igualmente excepcionais podem e devem ser exploradas.
Há diferentes razões para que essas contradições insurjam em determinados instantes. No caso da união entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, lado a lado com os esforços políticos do Movimento LGBT caminham lucrativos interesses de mercado. Além de ser uma instância de gestão da propriedade privada, o “casamento” constitui uma espacialidade de consumo. A criação de um “público gay” que adentre nesse espaço – com suas vantagens creditícias, seus endividamentos e aquelas prestações a perder de vista – incrementa as possibilidades de ampliação desse consumo. O direito, por sua vez, entra no jogo para garantir a “segurança jurídica” necessária a certos dinamismos econômicos. Não pretendo dizer, com isso, que o reconhecimento da constitucionalidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo se deveu ao mercado. A luta histórica dos movimentos sociais não pode ser ignorada: muitos arco-íris foram hasteados em bandeiras e muitos homossexuais foram assassinados antes de Ayres Britto proferir seu voto. Mas não é analiticamente viável ignorar a confluência de interesses e a porosidade do Judiciário à lógica do mercado.
Navalhas simbólicas
Como estratégia de explicitação dessas contradições, algumas organizações vêm discutindo a respeito da “justiciabilidade dos direitos humanos” e da “democratização da Justiça”. São exigências minimamente democráticas a um Judiciário tradicionalmente hermético. A Terra de Direitos e outras organizações atuantes no campo da assessoria jurídica popular intencionam problematizar o Judiciário, desde sua estrutura administrativa até a fluência da participação popular nos atos do Executivo de escolha dos membros do STF. Nessa perspectiva, o Judiciário se torna uma questão a ser debatida, uma das nossas pautas, como deve ser o Estado de um modo geral. Essa postura, no entanto, legítima e necessária, requer que essas organizações caminhem sobre navalhas simbólicas – a dialética, afinal, é sempre cortante – considerando, como afirmou Bourdieu, que o objeto em disputa tende a disputar os sujeitos que o disputam.
Uma das consequências desse processo está na crescente crença – disseminada mesmo entre alguns setores das esquerdas – num Judiciário redentor, aquele que realizará os direitos e a democracia, o bastião da justiça. Essa sobrevalorização do direito deve ser compreendida, todavia, dentro de um contexto totalizante de negação da história e dos sujeitos que a movimentam. Conduzir uma abstração, como é o caso do direito, à centralidade das transformações sociais é mais do que ingenuidade, é renegar a práxis. O direito, disse Marx, não possui uma história própria. O desvendamento do campo jurídico solicita sua localização em relações sociais mais complexas, que o determinam e são por ele determinadas. Não há possibilidade de uma radical transformação de sociedade pronunciada pela retórica jurídica. Tal transformação permanece – e não há como ser diferente – nas mãos das classes e grupos sociais subalternizados, em suas organizações coletivas e em suas lutas históricas.