Pouca gente, além dos diretamente envolvidos, sabe que boa parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), todo o Programa Nacional de Habitação, o plano de expansão das universidades públicas, o ProUni, a criação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), as políticas afirmativas contra a discriminação racial, de mulheres e minorias sexuais e o amplo conjunto de medidas que impulsionaram enormes avanços na agricultura familiar nos últimos anos foram formulados e decididos com a participação direta de milhões de brasileiros, por meio de inúmeros canais criados ou ampliados para consolidar a democracia participativa no país.
Só as 73 conferências nacionais temáticas realizadas para debater políticas públicas envolveram, em seus vários níveis, cerca de cinco milhões de pessoas. Mais da metade dos conselhos nacionais de políticas públicas que contam com participação popular foram criados ou ampliados nos últimos oito anos.
A participação popular na elaboração, implementação e fiscalização das políticas públicas ganhou amplitude sem precedentes, contribuindo para aumentar tanto a eficácia e abrangência das ações públicas, como a capacidade de formulação dos movimentos sociais.
Durante esse período, programas estruturantes como as medidas conjunturais relevantes foram decididos e implementados por meio de diálogo direto e da mais ampla negociação com os movimentos sociais. Para isso foram criados ou ampliados diversos canais de interlocução do Estado com os movimentos sociais – conferências, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo etc. -, que já configuram o embrião de um verdadeiro sistema nacional de democracia participativa.
Políticas de desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, defesa da igualdade racial, dos direitos das mulheres ou de minorias sexuais, dentre tantas outras, foram discutidas nas 73 conferências nacionais sobre políticas públicas. Elas representam 64% do total desses encontros (114) realizados no Brasil nos últimos 60 anos, e abrangeram um leque de temas nunca antes levados ao amplo debate popular pelo poder público. Os assuntos abordados e deliberados vão desde saneamento e habitação à políticas de geração de renda, reforma agrária, reforma urbana, direitos humanos, política científica e tecnológica, de uso das águas, estratégias para o desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais (APLs), passando por temas específicos como saúde indígena ou defesa dos direitos das minorias sexuais.
A maior mudança nesse processo democrático, segundo Roberto Pires, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, é que “estes espaços de participação têm gerado oportunidades para atores sociais, grupos, movimentos, associações localizarem suas demandas. São grupos que, frequentemente, por representarem minorias políticas, têm grande dificuldade de levar suas demandas aos legisladores e formuladores de políticas públicas”.
Com formato congressual, algumas conferências começam com debates por bairro ou escola (como as de educação), todas têm etapas municipais que discutem teses de um documento base e elegem representantes para o encontro regional ou estadual, de onde saem os delegados nacionais. Delegados dos ministérios participam ativamente de seus grupos de trabalho e das plenárias das conferências nacionais, trazendo dados, opinando, divergindo e interagindo com os participantes desses encontros, boa parte dos quais contou com a participação do próprio presidente da República.
Esses encontros nacionais, em sua maioria realizados em Brasília, costumam reunir entre 600 e cinco mil pessoas anualmente ou a cada dois ou quatro anos, dependendo do tema. Até brasileiros que vivem no exterior já puderam participar de duas conferências, de Comunidades Brasileiras no Exterior, realizadas em julho de 2008 e outubro de 2009.
As diretrizes aprovadas nas diversas conferências nortearam políticas públicas elaboradas, fiscalizadas e avaliadas pelos 61 conselhos de participação social que – integrados por representantes do governo e da sociedade civil – hoje assessoram as ações de todos os ministérios. Muitas das suas deliberações já se tornaram decretos, portarias ou projetos de lei aprovados ou em tramitação no Congresso Nacional.
Mas as conferências nacionais não foram os únicos canais de participação ampliados nos últimos anos. Dos 61 conselhos nacionais de políticas públicas com participação popular existentes, 33 foram criados ou recriados (18), ou democratizados (15) desde 2003. Hoje, 45% de seus membros são do governo e 55% da sociedade civil, incluindo, dependendo do caráter do conselho, representantes do setor privado e dos trabalhadores em geral ou de dado setor, da comunidade científica, de instituições de ensino, pesquisa ou estudos econômicos, assim como por organizações de jovens, mulheres e minorias.
Por meio das conferências, conselhos, mesas de negociação, audiências públicas e outros canais, tanto os grandes programas do governo – inclusive o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e o Minha Casa, Minha Vida -, como as medidas conjunturais mais importantes – como as de combate à crise – foram previa e amplamente discutidos com a sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo, projetos polêmicos – como a transposição do rio São Francisco, a construção das duas usinas do rio Madeira e da BR 163 e o plano de Desenvolvimento Sustentável da Ilha de Marajó – foram objeto de diversas audiências públicas nos municípios afetados.
E para temas importantes e específicos – como uma política para a valorização do salário mínimo, a melhoria das condições de trabalho no setor sucro-alcooleiro, as reivindicações das mulheres camponesas, do funcionalismo, dos atingidos por barragens, da moradia popular – foram criadas mesas de negociação permanente.
“Todas as medidas de maior impacto econômico e social do governo foram decididas e implementadas com ampla participação social”, frisa Luiz Soares Dulci, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República. Tradicionalmente um órgão de assessoramento das articulações políticas do governo com o Congresso, com algumas tarefas administrativas relacionadas ao Planalto, a partir de 2003 a Secretaria ganha formalmente a função de articular uma estreita comunicação do governo com a sociedade civil organizada. A partir daí, todas as políticas importantes passam a ser formuladas junto com os movimentos sociais nas conferências, conselhos e mesas de diálogo.
PROCESSO IGNORADO Apesar do amplo alcance destas políticas, poucos dos afetados sabem que também o Plano Nacional de Habitação, a Lei Nacional de Saneamento e a de Resíduos Sólidos (já aprovadas) ou o Marco Regulatório da Mobilidade Urbana (em tramitação) refletem essencialmente formulações feitas pelos movimentos sociais no Conselho Nacional das Cidades e nas quatro conferências nacionais que este realizou desde que foi criado, em 2003.
Essas duas instâncias deram institucionalidade e amadureceram reivindicações dos movimentos comunitários que haviam começado a tomar forma na década de 1980, como o Fórum Nacional da Reforma Urbana. Centrado inicialmente em moradia, o fórum logo passou a discutir transporte, saneamento e mobilidade e acabou convidado a participar da elaboração do programa de governo apresentado no segundo turno das eleições para o primeiro mandato de Lula.
Outra conquista do conselho e das conferências nacionais das cidades foi a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. O fundo contempla financiamento para a faixa de renda de zero a três salários mínimos e, pela primeira vez, abriu a possibilidade de projetos habitacionais autogestionados, nos quais os recursos para casas que serão construídas em mutirão são repassados a entidades comunitárias. A Caixa Econômica Federal conta hoje com uma subgerência social para fazer essa interface com os projetos dos movimentos sociais.
“A Caixa nos trouxe vários projetos de habitação popular que foram refeitos na base da negociação. Graças a esse debate, o Minha Casa Minha Vida 2 prevê, por exemplo, o uso de energia solar para o aquecimento de água, e janelas para o máximo aproveitamento da luz natural”, conta Bartira da Costa, presidente da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam).
Ela lembra que a própria criação do Ministério das Cidades, no primeiro dia do primeiro mandato do presidente Lula, era reivindicação antiga do Fórum Nacional da Reforma Urbana. “Claro que essas leis e programas não refletem 100% das nossas reivindicações. Mas hoje podemos dizer que o Brasil tem políticas para a reforma urbana que foram elaboradas com ampla participação social, e que os movimentos sociais colocaram na pauta desse debate os temas necessários para construirmos uma cidade mais justa, mais democrática e com mais qualidade de vida”, analisa Bartira.
CONSENSO CONTRA A CRISE Grande parte das medidas adotadas para combater os efeitos da crise econômica foram decididas através de um amplo diálogo com a sociedade civil organizada. Foi numa mesa de negociação integrada por empresários, centrais sindicais e governo que se decidiu promover a desoneração tributária condicionada à manutenção do emprego, e a orientação para que os bancos públicos suprissem toda a demanda nacional por crédito.
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique, destaca o papel decisivo que teve nesse processo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CNDES), criado em 2003 e integrado por trabalhadores, empresários, movimentos sociais, governo e lideranças de vários setores.
“Ali estabelecemos a agenda positiva para combater a crise, baseada não em demissões, mas em aumento de investimentos, redução de impostos e ampliação do crédito para manter a demanda”, conta Henrique, lembrando que nos meses seguintes à eclosão da crise, o conselho apresentou suas propostas aos bancos públicos e aos empresários da construção civil e do setor automotivo.
Ainda mirando o combate à crise, o governo convocou no mesmo período as quatro maiores organizações nacionais de luta pela moradia para discutir o lançamento de um grande programa habitacional que previa construir 1 milhão de habitações populares para combater os efeitos da crise, o Minha Casa, Minha Vida.
“O governo nos chamou para discutir sua proposta e nós apresentamos as nossas. Como resultado, a lei que regulamenta o programa reflete, na íntegra, a discussão acumulada no conselho e no Ministério das Cidades. Graças ao debate passou a incluir, por exemplo, a regularização fundiária. A primeira edição do programa teve de ser decidida rapidamente para ser usada como medida anticrise, mas suas edições posteriores continuaram a ser aprimoradas pela discussão”, explica Bartira, da Conam.
MAIOR ACORDO COLETIVO DO MUNDO A política de valorização permanente do salário mínimo, que assegura ganhos reais anuais para 45 milhões de brasileiros ativos e aposentados, também foi fruto de ampla negociação que incluiu todas as centrais sindicais brasileiras.
Em 2005, foi criado um Grupo de Trabalho – integrado pelas centrais sindicais e os ministérios da Previdência, Trabalho e Planejamento – para elaborar um programa de valorização do salário mínimo. Desde que passou a vigorar, essa política elevou o salário mínimo em 60%, o que, segundo estudo do Dieese de 2010, impulsionou também o aumento do piso de várias categorias. O plano acordado prevê aumentos reais do mínimo, atrelados ao crescimento, até 2023. “O salário mínimo deixou de ser considerado mero instrumento de custo da previdência social para ser encarado como instrumento de desenvolvimento”, destaca o ex-ministro Dulci.
Nessa mesa de diálogo com as centrais sindicais foram pactadas também: a nova tabela do imposto de renda – que isentou totalmente mais de 700 mil trabalhadores e reduziu a contribuição dos assalariados médios -, várias medidas de desoneração tributária das classes populares, como a extinção de impostos federais sobre alimentos básicos e materiais de construção; além das iniciativas para expansão do crédito, como o programa de crédito consignado, com juros mais baixos e desconto na folha de pagamento. Esse programa direcionou para o consumo popular e para o aquecimento do mercado interno mais de R$ 105 bilhões.
Como resultado desse diálogo, o governo também enviou ao Congresso um projeto de lei que cria obstáculos à demissão voluntária e outro que estende a convenção coletiva para o setor público.
ASSISTÊNCIA SOCIAL Também as políticas de proteção social e transferência de renda para as famílias que viviam abaixo da linha da pobreza foram concebidas, e vêm sendo executadas, em conjunto com centenas de entidades da área social, laicas ou religiosas, em todo o país.
Quatro conferências nacionais de Assistência Social discutiram em profundidade essas políticas, cujo carro chefe é o Bolsa Família, mas que incluem também o salário mínimo pago a 3,2 milhões de portadores de deficiências e idosos pobres, os programas de aquisição de alimentos e merenda escolar, o programa de construção de um milhão de cisternas e os quase 6 mil centros de referência da assistência social (Cras) instalados em mais de 4 mil municípios.
Uma das conquistas mais importantes dessas conferências foi a criação do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Com modelo similar ao do Sistema Único de Saúde (SUS), o Suas foi uma deliberação da Conferência de Assistência Social de 2003, debatida e aprovada em outras conferências.
“As conferências foram importantes para que se evitasse o desmonte do orçamento específico da seguridade social, como ficava implícito em algumas propostas colocadas na discussão sobre a reforma tributária. Além de colocar a assistência social como política pública e não como caridade, o Suas define, mais claramente até que o SUS, a responsabilidade de cada ente federativo no financiamento da área”, opina José Antonio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
A VOZ DO CAMPO A mesma lógica participativa está por trás das políticas públicas para o campo. O diálogo com os movimentos sociais permitiu os programas de ampliação da assistência técnica, as políticas de preços mínimos e a criação do seguro investimento que, em caso de quebra de safra por seca ou enchentes, garante o pagamento não só do financiamento obtido como também de parte dos ganhos previstos.
“O estreitamento do diálogo ampliou não só o volume de recursos, como a eficácia da sua aplicação porque a essência de todos esses programas é fruto de anos de experiências acumuladas por organizações cooperativas e movimentos sociais do campo, que passaram a ser ouvidos”, avalia a coordenadora da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), Elisângela Araújo. Criada há cinco anos, a entidade aglutina quase mil sindicatos de agricultores rurais, além de federações de 17 estados.
Entre os avanços obtidos, a dirigente rural menciona o fato de a Embrapa estar começando a se preocupar, também, em desenvolver tecnologias adaptadas à agricultura familiar – que, por ter produção diversificada, requer logística diferente das monoculturas das grandes propriedades – e, sobretudo, os avanços no acesso ao crédito: “Antes tínhamos muitíssima dificuldade para dialogar com os bancos e o crédito para agricultura familiar acabava ficando todo no Sul, onde as cooperativas eram mais organizadas. Muitos nem nos recebiam e tínhamos de ocupar as agências. Isso mudou completamente, houve orientação e capacitação para que os bancos dialogassem conosco e o cooperativismo avançou em todo o país”, conta, destacando, porém, o muito que falta por avançar: “nossos diálogos com o governo agora se centram em desenvolver programas de capacitação dos agricultores familiares para que desenvolvam bons projetos”.
Outra iniciativa que espelha uma reivindicação antiga das organizações de trabalhadores do campo é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) pelo qual o governo compra, a preços de mercado, a produção de agricultores familiares locais para abastecer creches, escolas e hospitais.
Criado em 2003, o PAA ampliou-se muito nos últimos três anos, sobretudo no Norte e Nordeste, garantindo R$ 2 bilhões em vendas para o setor em 2010. E, desde o final de 2008, uma lei estabelece que o Programa de Alimentação Escolar compre ao menos 30% dos alimentos de agricultores familiares. Em mais de 300 municípios, essas compras já são feitas localmente, por meio de editais específicos para cooperativas.
“Com esses programas, os agricultores passaram a receber preço justo e ampliaram sua renda, ao mesmo tempo em que asilos, creches, orfanatos, escolas e hospitais passaram a consumir frutas e legumes frescos, em vez de sopas de macarrão com salsicha e bolachas, que caracterizavam a alimentação de muitas dessas instituições”, frisa Elio Neves, da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), acrescentando que graças a esses programas, apenas uma cooperativa coordenada pela Feraesp, que congrega 240 famílias, ampliou sua renda em 60% nos últimos dois anos. “O PAA é um programa que fortalece o mercado interno, a produção e a qualidade dos alimentos consumidos”, salienta Neves.
CANAIS PARA PAUTAS NACIONAIS Segundo o presidente da Contag, Alberto Broch, além do conselho e das conferências, o tradicional “Grito da Terra”, que as entidades de trabalhadores rurais promovem anualmente para negociar suas reivindicações com o governo tornou-se outro espaço privilegiado de interlocução: “Realizamos o ?Grito? há 16 anos, mas nunca tivemos um diálogo tão fluído e tão próximo como no governo Lula”, diz o dirigente da Contag. Ele dá exemplos bem concretos:
“Antes, era quase impossível conseguirmos conversar com o Itamaraty por mais que um acordo internacional prejudicasse produtores brasileiros. Hoje temos interlocutores lá não só para evitar prejuízos como para obter acesso, por exemplo, a linhas de financiamento da Associação Brasileira de Cooperação Internacional”.
Broch destaca que, no ano passado, as entidades que integram o “Grito da Terra” negociaram diretamente com 18 ministros debatendo não só agricultura, assistência técnica e financiamento, como saúde, educação rural e políticas sociais para o campo.
O Grito da Terra é apenas uma das grandes pautas nacionais para as quais o governo criou canais institucionais para facilitar o mais amplo debate. Outro exemplo de movimento cujo canal de diálogo com o governo foi ampliado é a Marcha das Margaridas, que uma vez a cada três ou quatro anos reúne em Brasília cerca de 5 mil mulheres do campo que vão apresentar suas reivindicações, que incluem desde questões de gênero e combate à violência doméstica até problemas de educação, saúde, alimentação e transporte escolar.
Como essas pautas nacionais incluem questões relacionadas a diversos ministérios, a discussão geralmente é coordenada pela Secretaria-Geral de Presidência da República. “Não tem sentido um governo que preza a participação popular deixar esses movimentos baterem de ministério em ministério. Então, a Secretaria-Geral discute previamente a pauta com as lideranças, as apresenta aos gestores da participação social dos vários ministérios, coordena longas discussões e negociações e, ao final, entrega aos movimentos um caderno volumoso com as respostas às reivindicações, inclusive as não atendidas”, explica Kleber Gesteira Matos, secretário executivo adjunto da Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR).
POLITIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS O diálogo intenso aumentou não só a eficácia das políticas públicas, como também o nível de politização dos movimentos sociais. “Estávamos acostumados a reivindicar para outros fazerem, fossem prefeituras, Estado ou patrões. Com os novos canais criados, participamos não só da formulação, como da operacionalização das políticas”, diz Élio Neves, da Feraesp.
Elisângela, agricultora da região sisaleira da Bahia que há duas décadas milita nos movimentos do campo – primeiro em comunidades eclesiais, logo nos sindicatos e hoje na Fetraf e na CUT Nacional – concorda. “Ampliamos nossa compreensão sobre o funcionamento do Estado e nos tornamos capazes de não só reivindicar como também participar na elaboração, implementação e fiscalização das políticas públicas”.
Dulci lembra que essa maior politização se traduz na intensa participação das centrais sindicais e movimentos sociais não só na discussão de temas trabalhistas e específicos, como também de aspectos estruturais e conjunturais da política econômica, como a redução dos juros, a ampliação do crédito, os incentivos ao mercado interno, a descentralização industrial.
“Na verdade, [os movimentos sociais] negociam cada vez mais uma estratégia nacional de desenvolvimento. Na crise financeira internacional isso ficou evidente quando as centrais pactuaram com o governo um conjunto de medidas para evitar a recessão, sustentar o consumo e garantir o emprego”, avalia o ex-ministro.
CORTADORES DE CANA Outra mesa de negociação importante que reflete a ampliação do foco trabalhista para o de um projeto de desenvolvimento foi a instituída para obter a melhoria das condições de trabalho do setor sucroalcooleiro. Nela, ao longo de quase dois anos, usineiros, trabalhadores do setor e governo (representado nada menos que por seis ministros) construíram um conjunto de medidas e um amplo compromisso: “Por ter representantes dos três setores, essa mesa deliberou coisas que foram muito além das condições de trabalho, incluindo também estratégias de geração de emprego e um plano nacional de requalificação para facilitar a recolocação dos trabalhadores que ficarão desempregados com a mecanização da colheita”, frisa Élio Neves, da Feraesp, lembrando que o plano prevê requalificar cerca de 25 mil pessoas nos oito estados produtores de cana.
A negociação culminou na elaboração de um protocolo que determina, entre outras coisas, que a contratação de migrantes deveria ser feita pelo Serviço Nacional de Emprego, para garantir que eles já saiam com contratos firmados na origem e que tenham boas condições de transporte. Com isso se elimina a figura do gato, principal responsável pela prática da escravidão por dívida, tristemente famosa entre os trabalhadores migrantes.
Embora seja de adesão voluntária, esse protocolo já foi assinado por mais de 300 das quase 500 usinas em funcionamento no país, “O suficiente para que os outros se sintam pressionados a aderir também”, diz o presidente da Contag, Alberto Broch.
A mesa agora continua para organizar a fiscalização conjunta do cumprimento do acordo. “Tudo foi estabelecido conjuntamente, do questionário à forma de abordar e entrevistar os trabalhadores, passando por outras estratégias de verificar se eles estão mesmo recebendo os benefícios”, conta o presidente da Contag, que já participou de quatro experiências piloto de fiscalização conjunta com representantes do governo e dos usineiros.
“Ser responsável também pela fiscalização do acordo favorece o entendimento do processo inteiro e imprime uma qualidade diferente à participação, um outro nível de compromisso para que as coisas funcionem. Não se trata mais de só reivindicar. Em 53 anos nunca vi um processo assim, mas é assim que a democracia mais se fortalece”, pondera Broch.
EDUCAÇÃO Na área da educação, as estratégias globais foram estabelecidas pelas quatro conferências nacionais da área, das quais participaram milhares de pessoas, e projetos fundamentais foram decididos e implementados a partir de uma ampla aliança com as mais variadas organizações engajadas na defesa do ensino público. Foi o caso da reforma universitária, do Programa Universidade para Todos (ProUni), do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), do plano de reconstrução e expansão das universidades federais e do piso nacional do magistério.
“Sem essa aliança para neutralizar o lobby privatista, não teria sido possível a elevação do orçamento educacional em 125%, criar 250 novas escolas técnicas (mais que em todo século anterior), inaugurar 15 novas universidades federais e expandir outras 42, inclusive instalando 131 novos campi pelo interior do país”, frisa o ministro Dulci.
DIREITOS ESPECÍFICOS Para além dos direitos econômicos e sociais clássicos, como saúde, educação, emprego, salário e proteção social, a democracia participativa propiciou ainda, nos últimos anos, importantes avanços em direitos de segmentos sociais específicos. Dessa forma, desenvolveu-se uma ampla discussão e a adoção de medidas concretas, que incluíram diversas políticas afirmativas, em favor da igualdade racial, do reconhecimento de demandas próprias da juventude, de idosos, portadores de deficiência e minorias sexuais.
Para criar e implementar essas políticas pública foram, inclusive, criados órgãos específicos, como as secretarias especiais de Políticas para as Mulheres, de Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos. As conferências nacionais dessas três áreas mobilizaram centenas de milhares de pessoas, difundiram valores de tolerância e direito à diferença e produziram conquistas importantes como a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial – depois de dez anos de tramitação -, o programa Brasil Sem Homofobia, pioneiro na América Latina – e a Lei Maria da Penha, contra a violência doméstica contra a Mulher.
Em 2004, foi criada a Secretaria Nacional da Juventude e logo depois o Conselho Nacional dessa área, que conta com a participação de 67 organizações de jovens, da União Nacional de Estudantes (UNE) ao hip-hop, dos trabalhadores rurais aos jovens empresários, da Pastoral da Juventude ao Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis (LGBT). Mais de 500 mil jovens de todos os estados participaram das várias etapas da Conferência Nacional da Juventude, que teve como principal resultado o ProJovem que, em menos de quatro anos, atendeu a mais de dois milhões de jovens marginalizados, proporcionando-lhes escolaridade, inclusão digital, formação profissional e inserção comunitária.
“O Brasil é um país complexo, temos desde operariado urbano sob impacto da alta tecnologia até comunidades tradicionais que não querem se integrar à lógica capitalista, como ciganos, quilombolas, castanheiros, ribeirinhos e povos indígenas. O objetivo dessas instâncias de participação popular é estabelecer um diálogo permanente que permita ao governo desenvolver políticas públicas que deem conta dessa pluralidade brasileira”, diz Gesteira Matos, da SGPR.
POLÍTICA EXTERNA Mesmo a política externa brasileira, antes assunto exclusivo de técnicos e políticos, passou a ser debatida com a sociedade civil. Entidades populares passaram a integrar as delegações brasileiras aos principais foros multilateriais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o G20, as conferências das Nações Unidas sobre clima e direitos humanos ou as cúpulas do Mercosul.
E a cooperação com os países do Sul passou a ser encabeçada também pelos movimentos sociais. Em 2007, por exemplo, instituiu-se o Conselho Brasileiro do Mercosul Social e Participativo, além do Instituto Social do Mercosul. No Brasil, encontros com o Mercosul foram realizados em sete estados e quatro grandes cúpulas sociais da região reafirmaram a necessidade de ir além da integração comercial, incorporando à agenda comum temas de educação, cultura, ambientais e étnicos.
A “PRECURSORA” Até as viagens que o presidente Lula realizou a cada ano pelo país foram transformadas em canais para estreitar a interlocução do governo com os movimentos sociais. Isso ocorre por meio da “precursora”, grupo de assessores que visita antecipadamente os locais preparando a viagem. Tradicionalmente integrada por profissionais da área de segurança, cerimonial, comunicação e assessores técnicos, desde 2003, a “precursora” conta também com a participação de assessores da Secretaria-Geral encarregados de estabelecer contatos com os movimentos sociais locais para prospectar suas reivindicações. O diálogo já evitou situações difíceis como a ocupação de uma hidrelétrica durante uma visita presidencial a Águas de Chapecó, em Santa Catarina, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
“Eles estavam acampados numa área próxima à usina e planejavam ocupá-la quando o presidente chegasse, para abrir um canal de negociação. Nós chegamos antes, colocamos o pessoal do MAB frente a frente com o ministro das Minas e Energia e com o presidente e abrimos a negociação”, conta Cândido Hilário de Araújo, assessor da Secretaria-Geral e integrante da precursora, mais conhecido como “Bigode”.
Na negociação, os representantes do MAB apresentaram um documento que analisava os problemas locais e nacionais: “Chapecó foi um marco fundamental para que a Secretaria-Geral estabelecesse relações permanentes com o MAB, a partir daí os consórcios tiveram de aprender a negociar com os afetados pelas usinas, o que culminou em um acordo nacional que estabeleceu um patamar mínimo de compensações para que uma barragem fosse construída”, lembra Bigode.
A precursora mudou até a organização espacial dos eventos dos quais participa o presidente, “Antes a linha de frente ficava reservada para as autoridades, agora é dividida entre essas e populares e colocamos sempre lideranças sociais locais no palco para falarem”, diz Geraldo Magela, secretário nacional adjunto de Estudos e Pesquisas Político-Institucionais da Secretaria-Geral.
“A precursora organiza cerca de 1.000 eventos ao ano, recolhe as demandas locais e procura os órgãos finalistas para que deem continuidade às negociações, todas têm desdobramentos. É um processo rico de aprendizado: o Estado mais poroso à participação social faz os militantes se apropriarem dele, entenderem como funciona e ajudarem a aprimorá-lo”, diz Magela.
PARTICIPAÇÃO, NÃO COOPTAÇÃO O ex-ministro Dulci destaca que toda essa sintonia e a institucionalização desses canais para a participação popular no governo não implica, de forma alguma, a subordinação ou redução da autonomia organizativa e política dos movimentos.
“É comum divergirem abertamente do governo”, afirma Dulci. Foi o que ocorreu, aliás, durante o primeiro mandato de Lula, no que se refere a aspectos importantes da política macroeconômica: “Os movimentos cobravam uma inflexão desenvolvimentista – redução de juros, expansão do crédito e ampliação do investimento público – que favorecesse o crescimento e a inclusão social”.
Dulci ressalta que essas divergências se expressaram não só nos canais institucionais para esse debate como também em manifestações de massa. Ele menciona as três grandes marchas da classe trabalhadora com 40 mil ou 50 mil pessoas cada, os “Gritos da Terra”, realizados anualmente pela Contag, os acampamentos nacionais do MST e as Marchas das Margaridas, que reuniram na Esplanada dos Ministérios 30 mil camponesas de todo o país.
O desafio agora, segundo ele, é ampliar a qualificação específica para os processos participativos, tanto no governo como nos movimentos sociais. Com esse intuito, a Secretaria-Geral desenvolveu, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Programa de Formação de Conselheiros. Além de quadros do governo, 4.372 lideranças e militantes frequentaram os cursos e entre as monografias apresentadas há algumas que abrem novas perspectivas teóricas e práticas para a democracia participativa.
Segundo o ex-ministro, justamente para tornar irreversível o aprofundamento da democracia participativa foi elaborado o projeto de Consolidação das Leis Sociais.
Reivindicação das próprias organizações populares, o projeto se propõe a institucionalizar – tornando-as políticas de Estado – os programas sociais e canais de participação existentes, mantendo, entretanto, sua flexibilidade política e organizativa.
Nessa proposta de lei “estava inclusa a ideia de institucionalizar, de dar amparo legal a essas experiências de participação no governo federal”, explica Pires, do Ipea. Apesar de o projeto de lei não ter sido enviado ao Congresso, “esta é uma agenda que permanece nas intenções do governo, talvez não sob esse nome, mas com o objetivo de pensar em alguma forma de dar uma institucionalidade maior a estas instâncias de participação”, acrescenta Pires, destacando que “mesmo não havendo uma lei que consolide e garanta isso junto, esses canais, conselhos e conferências principalmente, têm se tornado gradualmente parte integrante dos processo de formulação e acompanhamento de políticas públicas em cada área”, conclui.
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Origens da participação popular
As origens de uma certa tradição de participação popular no Brasil remonta à colonização portuguesa e às práticas da esquerda da Igreja e da esquerda em geral. O Conselho Nacional de Saúde, da década de 1950, é o mais antigo a ter representantes da sociedade civil que, durante longos períodos, foram escolhidos pelo governo entre entidades e personalidades.
A participação deu um salto na década de 1980, quando diferentes setores da sociedade se mobilizaram pela defesa de seus interesses, multiplicando comitês de fábrica, de bairro, de luta contra a carestia, além das comunidades eclesiais de base. Nessa época tem início o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a Luta por Eleições Diretas. Essa ampla mobilização origina várias formas de participação local, com destaque para a experiência do orçamento participativo, implementada em Partido dos Trabalhadores (PT) em Porto Alegre a partir de 1989 e, posteriormente, estendida para 192 cidades, nem todas administradas pelo PT.
Com a Constituinte, a participação popular na elaboração, acompanhamento e fiscalização das políticas públicas ganha institucionalidade, já que a Carta prevê a criação de instâncias específicas com este fim, obrigatórias no caso de setores onde existem fundos a serem geridos, como saúde e educação.
Ao longo dos anos 1990, firma-se a ideia da participação em conferências e se multiplicam os conselhos municipais de políticas públicas, com a eleição de representantes da sociedade civil e indicação dos representantes municipais, primeiro nas principais capitais, logo nas cidades médias.
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Participação impacta Legislativo e melhora acesso a serviços públicos
Um estudo do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj) que procurou medir o impacto da participação popular na atividade legislativa constatou que um quinto dos projetos de lei e quase metade das propostas de emenda constitucional que tramitavam no Congresso em outubro de 2009 apresentavam forte convergência com deliberações de alguma conferência. A convergência é mais intensa durante o governo Lula: mais de dois terços das leis e 90% das emendas constitucionais que foram aprovadas com convergências com diretrizes das conferências concentram-se nos oito anos dessa gestão. As deliberações das conferências que não se transformaram em decretos ou projetos de lei, no mínimo, se incorporaram à agenda de discussões do governo.
Uma segunda etapa da pesquisa do Iuperj, conduzida por Thamy Pogrebinschi, mostra que a criação de conselhos e realização de conferências específicas sobre políticas públicas pelos direitos humanos e de grupos tradicionalmente discriminados também se refletiram no legislativo. Resultados preliminares do estudo mostram que projetos de lei com este foco correspondiam a 18% do total que tramitava no Congresso no final de 2009.
Outro estudo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o aumento da participação popular na elaboração das políticas aumenta sua eficácia, ampliando o acesso aos serviços públicos e melhorando o desempenho administrativo. O estudo analisou o acesso a serviços públicos de saúde e educação em cidades com mais de 100 mil habitantes e constatou que aquelas com maior participação popular apresentaram, em proporção à população, um número três ou quatro vezes maior de creches e de matrículas no ensino fundamental, além de um número de consultas e de leitos do SUS 10% superior às outras. Seu desempenho administrativo também era melhor: com uma receita corrente 70% superior às dos municípios com baixos níveis participativos, os mais participativos tinham uma receita tributária 112% maior.
“Nestas cidades, a participação se insere em um circuito virtuoso entre demandas políticas e a melhor administração da coisa pública porque para que as políticas sociais deliberadas pelas instituições participativas possam ser implementadas é necessário aumentar a receita”, conclui o pesquisador Leonardo Avritzer, responsável pelo estudo.
Seu levantamento mostra que, entre 1998 e 2008, o número de conselhos municipais de políticas públicas saltou de 274 para 490 e que em todas essas cidades hoje existem mais conselhos do que os que são obrigatórios por lei.
O trabalho também revela que a capacidade deliberativa dessas instâncias vem crescendo progressivamente, à medida que se fortalecem com a realização de conferências municipais e com a criação de comissões temáticas. Em 2009, quase 90% dos conselhos municipais tinha comissões temáticas e 95% deliberavam em reuniões plenárias.
Por Simone Biehler Mateos – de São Paulo