O Estado brasileiro vem tratando a questão indígena orientado por aspectos que definem de forma muito perversa e direta seu caráter antidemocrático e que ainda merecem muita atenção da população: de um lado, apesar das garantias constitucionais, o Estado brasileiro se mantém impondo práticas de exceção recorrentes sobre os direitos dos povos originários e comunidades tradicionais e, de outro, sustenta pelo uso da violência o caráter estruturalmente racista de sua ação política – agora em ascensão mediante a pauta conservadora que está aí a condenar povos originários e tradicionais do país.
Além do Estado, a grande e tradicional mídia também joga papel importante no sentido de fortalecer preconceitos contra povos indígenas e quilombolas. São muitas as situações de ameaças, de criminalização, de violência e de insegurança que se abatem sobre lideranças desses povos. Nas grandes cidades, indígenas se somam às maiorias sem direitos. Esses vivem no limbo e na invisibilidade. Se constituem como não-aldeados e ou estão em ditas aldeias urbanas, sem lugar nas pautas do direito à cidade e longe da vida política urbana, apesar de já se registrarem iniciativas de resistência de indígenas em ocupação de prédios públicos ou mesmo na reivindicação da constituição de bairros e de aldeias para seu abrigamento nas cidades.
O balanço recente acerca da participação política de povos e populações tradicionais na vida eleitoral apontou para o seguinte: atualmente existem 157 vereadores; 05 prefeitos; 01 mandato coletivo estadual (SP, 2018); 01 deputada federal (2018) e candidatura nacional à presidência (Sônia Guajajara), o que diz do interesse, da necessidade e do crescimento da presença indígena, por exemplo, na dinâmica da democracia representativa mais geral do país. É verdade que também se registram problemas nessa aprendizagem político-eleitoral: mandatos indígenas, em geral, têm sido assessorados por não-indígenas e, supostamente, se tornam mandatos frágeis e/ou a serviço de outras pautas que não as de seus povos. Também é digno de registro o fato de que os partidos políticos têm baixo compromisso com as pautas de povos indígenas, quilombolas, etc. O saldo é uma baixa capacidade de representar os interesses e as pautas coletivas de seus pares, razão pela qual também deixa frágil o processo de defesa de suas causas mais estruturantes.
Enquanto isso, como parte dessa mesma questão está a histórica transferência de riscos e custos ambientais sobre tais povos e comunidades tradicionais perpetrada pelo Estado e pelas elites.
O componente da discriminação racial, étnica, de classe e de origem é central aí, pois, se trata de um mecanismo de conivência do Estado com as elites visando a ampliação da lucratividade dos capitais, que insiste em reafirmar desigualdades, discursos de inferioridade sobre indígenas e outros povos tradicionais, bem como a perspectiva de uma cidadania desigual e historicamente dominante no discurso e nos atos dessas elites do Executivo, Legislativo e Judiciário.
O primeiro passo dessas elites no atual contexto foi procurar dar efetividade e legitimidade a discursos anti-indígenas e antiquilombolas. O passo seguinte e em curso é a proposição e adoção de medidas do governo federal visando fazer valer a afirmação de que, no que depender do poder executivo, “não tem mais demarcação de terra indígena”. Por isso, já está em curso uma radical reestruturação dos órgãos relacionados aos direitos indígenas. Um exemplo é que antes (desde 1991) subordinada ao Ministério da Justiça (MJ), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) está agora abrigada na pasta da Família, Mulher e Direitos Humanos.[1]
O resultado dessa reestruturação ministerial será a paralisação e judicialização dos procedimentos demarcatórios. Também está em estudo na nova gestão a criação de um conselho interministerial para decidir sobre as demarcações, modelo similar ao implantado na ditadura militar. O governo tem anunciado, sem detalhar como pretende fazer, a revisão de todos os processos de regularização fundiária em âmbito federal, incluindo os de reforma agrária, quilombos e TIs. O responsável pela secretaria de Assuntos Fundiários assegura que o governo vai tentar reverter ou anular processos em que forem identificadas falhas ou irregularidades, inclusive as demarcações indígenas já concluídas. A ameaça de reversão ou paralisação definitiva do reconhecimento dos territórios chega depois de anos de estagnação em seu andamento. Restam por resolver um terço das pendências territoriais.
A reforma ministerial esvaziou e retalhou a Funai, criando limbos jurídicos e administrativos que colocam em xeque a capacidade executiva dos órgãos envolvidos com o tema indígena. A Medida Provisória (MP) 870/2019 e os decretos que reestruturaram os ministérios mencionam apenas a perda das funções de demarcar e opinar sobre licenciamentos. O restante da legislação ainda vigente continua atribuindo à Funai as duas tarefas e a função de proteger os direitos indígenas em geral. O MJ também continua citado nas normas sobre demarcações e proteção dos bens da União, como é o caso das TIs. MP e decretos também não especificam a transferência de estruturas, orçamento e cargos da Funai para o MAPA e o INCRA.[2]
Outro anúncio que tem gerado indignação e uma forte mobilização dos povos originários e tradicionais foi o da municipalização da saúde indígena, feito pelo Ministério da Saúde. O governo federal também convocou o Conselho de Defesa Nacional para decidir que a implantação da linha de transmissão de energia entre Manaus e Boa Vista é uma obra de “interesse nacional”, e anunciou um decreto presidencial nesse sentido, ainda não publicado. Essa definição visa apressar a implantação do projeto, cujo processo de licenciamento ambiental depende de uma consulta aos índios Waimiri Atroari. O governo pretende construir o “linhão” ao longo do eixo da BR-174, que corta o território indígena em 125 km.
Sabemos que a relação entre democracia e as questões que afetam os direitos dos povos originários e tradicionais é profunda, mas, agora está diretamente ameaçada. Apesar do respaldo dado pela Constituição Federal de 1988, as modalidades de reconhecimento das terras de uso comum através de concessão ou titulação coletiva estão sendo postas em cheque por essa orientação radicalmente privatista do governo federal, cujo intuito é garantir o retorno do direito individual, absoluto e ilimitado de propriedade, o que ataca as garantias constitucionais para povos e comunidades tradicionais.
O objetivo final do governo, de um lado, é liberar terras públicas e devolutas ao mercado e de outro lado, impor ainda mais riscos aos direitos territoriais de povos originários e comunidades tradicionais quanto a terem reconhecidas e protegidas práticas de uso comum de suas terras. A população brasileira não vai aceitar isso, por isso a mobilização para fortalecer e incrementar a agenda de fortalecimento da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político que, dentre outros, convoca essa reflexão acerca da questão democrática indígena brasileira.
[1] Já as atribuições de demarcar as Terras Indígenas (TIs) e opinar sobre o licenciamento ambiental de projetos com impactos sobre essas áreas foram transferidas do órgão indigenista para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF) do ministério da Agricultura (MAPA), comandado pelos ruralistas, adversários históricos das demarcações. A perspectiva ainda não oficializada – é que as duas funções seriam tocadas no dia a dia por uma instância que ainda deverá ser criada no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), agora também vinculado à SEAF.
[2] A reforma ministerial também incluiu entre as competências do Departamento de Estruturação Produtiva, da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo do MAPA, a coordenação de iniciativas de fomento ao agroextrativismo e à produção de comunidades tradicionais, até então alocada na extinta Secretaria de Extrativismo do MMA. O problema é que entre as prerrogativas da nova secretaria do MAPA não há mais menção aos povos indígenas.
Questões para debater
- 1. Como estão os direitos dos povos originários e tradicionais hoje?
- 2. Qual o lugar de povos originários e tradicionais na democracia e no atual sistema político do país?
- 3. Quais práticas de cultura política dos povos originários e tradicionais resistem e que poderiam contribuir para mudar o atual padrão de nossa democracia?