Justiça Popular, Justiça Formal e Partidarização do Sistema de Justiça

Justiça Popular, Formal e Partidarização

A tentativa de construção de sistemas democráticos nos países ocidentais é um fenômeno recente e incompleto. Cada vez mais, é fundamental compreendermos que a democracia é um ideal. Assim, como expressou Galeano, definindo utopia como o horizonte que nunca se alcança, mas que serve de guia para o caminhar, podemos dizer que a democracia deve ser uma busca eterna, sempre incompleta, e com a qual devemos estar sempre insatisfeitos, nos movendo para uma constante luta pelo aprofundamento de sua democratização.

Como analisaram vários autores (Pitkin, Dahl, O’Donnell), a ideia original da democracia moderna, que tem como berço as revoluções francesa e estadunidense, definhou ao longo de dois séculos, limitando-se à implantação de um sistema representativo com sufrágio universal e disputa partidária entre elites. A perspectiva da participação popular foi perdendo espaço para um regime estruturado centralmente na delegação das decisões aos representantes. 

Muitos autores, inclusive, negam-se a referir-se aos atuais sistemas políticos como democracias, utilizando termos como poliarquia (Dahl), manifestações históricas democráticas (Nun), regime democrático (O’Donnell).Um dos aspectos fundamentais que se perdeu ao longo desse tempo foi a articulação da ideia da democracia com espaços de deliberação. Venceu a perspectiva quantitativa que leva à ilusão de que a decisão da maioria (50%+1) é necessariamente democrática. Ficou apagado na história o berço fundamental da proposta democrática ocidental, que comumente faz referência à Atenas, que são os espaços públicos de tomada de decisão.

A democracia, portanto, estaria atrelada ao debate, à apresentação de argumentos divergentes, à troca de opiniões, ao conhecimento da realidade dos outros, o que permitiria levar à decisão que melhor atende à maior parte dos cidadãos, sem desconsiderar o outro; algo próximo do que Rousseau denominava vontade geral. Como afirmava Wanderley Guilherme dos Santos, um crítico da visão quantitativa da democracia.

O senso comum compartilha com os ideólogos a ilusão de que o número assegura a qualidade de uma opinião, mas não há conexão necessária entre uma coisa e outra; “o método mais indicado para aumentar a probabilidade de que se adote uma boa política vem a ser o confronto de opiniões e de argumentos.

Entretanto, no senso comum e na estratégia de luta pela democracia de muitas organizações e movimentos sociais, a luta democrática ainda está muito restrita à interferência nas instituições e espaços formais do sistema político. Promovem-se discussões que se limitam a debater as regras eleitorais, as formas de inserção das populações marginalizadas nos espaços institucionais, as formas de financiamentos das eleições. Certamente, os pontos levantados e as pautas de luta são de grande importância nesse eterno caminhar em busca de um sistema democrático. Entretanto, pouco se discute e se propõe em relação a uma proposta estruturada e concreta de formação de espaços populares coletivos deliberativos, ancorados em territórios, que permitam uma verdadeira construção democrática das tomadas de decisão sobre as políticas públicas.

A primeira década dos anos 2000 foi palco de uma onda de governos progressistas na América Latina, principalmente como resposta às profundas mazelas socioeconômicas deixadas pelas políticas neoliberais. Dentre os diversos erros e acertos cometidos pelos governantes nesse período, viu-se emergir e ganhar destaque uma gama de experiências, muitas existentes previamente, de real democratização do sistema político, com maior ou menor alcance, que tornou a região um dos principais laboratórios de experimentações democráticas participativas. Foram muitos os estudos realizados buscando compreender e registrar essas experiências (Addor; Santos; Dagnino, Olvera e Panfichi).

Dois aspectos são importantes na compreensão dos avanços conquistados com essas experiências. Primeiro, é importante compreender que uma democratização da estrutura política não terá qualquer efetividade se não houver um avanço da cultura política (Addor). São inúmeros os casos de propostas pertinentes de fortalecimento de espaços participativos que nunca funcionaram porque não havia uma formação política suficiente que permitisse que a população tomasse para si aquele espaço. Portanto, na busca pela democratização dos regimes democráticos é importante que o avanço para um sistema mais aberto e participativo caminhe junto com um processo de formação política da população, de forma que o espaço deliberativo seja efetivamente ocupado por ela.
Segundo, fica claro que as principais experiências de aprofundamento da democracia se estruturaram a partir de espaços territorializados de participação popular. Mesmo em práticas de âmbito mais amplo, como orçamentos participativos municipais, havia um importante fortalecimento das associações de moradores, das organizaciones barriales, das juntas parroquiales, dos consejos comunales, das organizações comunitárias.

A representação, que também está presente nessas experimentações, ganhava maior concretude e legitimidade em função da força e da grande integração dos espaços participativos mais amplos com as práticas deliberativas nos territórios.
Essa relação entre escalas é destacada por Hannah Pitkin: “A representação genuinamente democrática só é possível, ela argumenta, onde o sistema representativo centralizado, de grande escala, necessariamente abstrato, é baseado em uma democracia direta viva, participativa, concreta no nível local”.

Nos últimos anos, após uma onda de vitórias de governos progressistas, temos visto na América Latina um crescimento do ataque das elites às propostas progressistas, tendo tido êxitos em muitos países na retomada do poder e, consequentemente, na destruição dos avanços em relação à conquista de diretos pela população. No Brasil, a elite política de direita impetrou um golpe parlamentar-midiático com o claro objetivo de bloquear uma proposta de governo progressista, de intervenção estatal na economia. Em 2018, vimos o sistema democrático chegar ao fundo do poço com a eleição de um político antidemocrático, que ataca as minorias e venera a tortura e o autoritarismo. Por trás de tudo isso, está o objetivo de uma parte da elite de retomar o processo profundo de implantação do mais duro programa neoliberal, mesmo que isso custe retrocessos no nosso frágil regime democrático. Prova disso, foi a agenda que se seguiu ao golpe: congelamento dos gastos social por vinte anos, reforma trabalhista, reforma da previdência, ataque aos direitos indígenas e quilombolas de acesso à terra, quase aniquilação de recursos para programas voltados aos trabalhadores, como agricultura familiar, reforma agrária, economia solidária.

Apesar da implantação dessa agenda completamente impopular, que ataca diretamente os direitos dos trabalhadores e dos grupos marginalizados, há uma frágil resistência popular, vinda principalmente de sindicatos, partidos de esquerda e movimentos sociais organizados. A grande massa de trabalhadores brasileiros ainda está inerte frente aos retrocessos em curso. Por um lado, faz-se a autocrítica do período dos governos petistas que, apesar de conseguirem levar melhores condições socioeconômicas à população brasileira, não construíram uma estratégia de formação política dos trabalhadores e, por consequência, não foram exitosos em avançar em uma ampliação da mobilização social (a experiência venezuelana, nesse sentido, vale ser conhecida).
Por outro, muitos dos debates que discutem as fragilidades da nossa democracia, expostas com o golpe e os processos políticos que se seguiram, se concentram ainda na revisão do regime democrático, isto é, do sistema político.  É nesse cenário que se busca trazer a reflexão sobre a retomada da perspectiva comunitária da democracia. 

A enorme distância que existe hoje entre o regime democrático e o cotidiano da população faz com que qualquer melhoria no sistema político possa representar, na prática, um avanço muito tímido, ou nulo, em uma efetiva democratização da democracia. Faz-se necessário retomar uma proposta que se estruture a partir da organização popular das bases, localizada, territorializada. É preciso retomar a prática do diálogo, das praças públicas, da troca de ideias que traga a discussão democrática para o cotidiano, para o busca da melhoria de vida imediata. Essa deliberação cotidiana sobre a vida concreta levará, naturalmente, a um processo mais amplo e profundo de formação sobre questões mais amplas da sociedade. É preciso pautar uma maior territorialização da democracia, que seja fortalecida a partir dos espaços públicos de debate e deliberação. Esse processo é o que permitirá um avanço da cultura política.

Há duas dificuldades que já se colocam presentes no início dessa proposta, que podem ser destacadas a partir de duas perguntas: é possível levar a cabo um processo intenso de organização territorial das bases cujos objetivos estejam além dos interesses de uma organização ou partido político? Quais as possibilidades de espaços públicos deliberativos da sociedade terem suas propostas e decisões concretizadas a partir de políticas e recursos públicos?

Quanto à primeira pergunta, há uma tendência forte de, quando há esse tipo de mobilização territorial, esses espaços serem subjugados aos objetivos de um partido ou organização, deixando de lado, aos poucos, seu objetivo inicial de transformação do território. Esse processo, naturalmente, começa a distanciar pessoas que, mesmo que tenham uma perspectiva progressista, não se sintam à vontade ou não concordem com aquela proposta institucional. Nesse sentido, é importante que essa retomada da democracia comunitária seja carregada de uma perspectiva mais ampla, suprainstitucional, de formação política. O objetivo tem que ser muito mais mobilizar as pessoas para discutir os problemas do território e perceber as contradições da sociedade, do que angariar este ou aquele indivíduo para seu partido ou movimento.

O segundo ponto destaca os limites da ampliação da cultura política quando não há uma concomitante democratização da estrutura política. A criação de espaços públicos de deliberação levará a encaminhamentos que, em muitos casos, exigirá um diálogo com o poder público local. Entretanto, o Estado brasileiro, em suas diferentes instâncias, não está preparado para receber essas demandas. Faltam espaços de diálogo entre Estado e sociedade que permitam que a população organizada possa influenciar as políticas públicas e a destinação dos recursos. Nesse cenário, a não execução das propostas deliberados naqueles espaços pode levar a uma desmobilização, um descrédito do próprio espaço participativo. Apesar dos desafios, parece ser importante buscarmos retomar essa perspectiva da democracia de bairro, da democracia da praça, da democracia comunitária, buscando a territorialização da democracia, o fortalecimento dos espaços de diálogo, de troca de ideia, de reflexão sobre a realidade de cada local, como pilar de uma retomada da democracia de forma mais ampla.

Questões para debater

Referências:

ADDOR, Felipe. Teoria democrática e poder popular na América Latina. Florianópolis: Insular, 2016.

AVRITZER, Leonardo. Participatory Institutions in Democratic Brazil. Johns Hopkins University Press, 2009.

DAHL, Robert A. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora da USP, 1997.

DAGNINO, OLVERA, PANFICHI (Org.). A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra; Campinas, SP: Unicamp, 2006.

NUN, José. Democracia: ¿Gobierno del pueblo o gobierno de los políticos?. Fondo de Cultura
Económica de Argentina S.A.: Buenos Aires, Argentina, 2001.

O’DONNELL, Guillermo. Teoria Democrática y política comparada. Em: Desarrollo Económico, vol. 39, No 156, Buenos Aires, janeiro-março, pp. 519-570, 2000.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. 1a Ed. 1762. Tradução: Rolando Roque da Silva. Ed Ridendo Castigat Mores, s/d.

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SANTOS, Wanderley Guilherme. O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.