O início do século XXI marca a disseminação da Internet como um novo lócus de realização das mais diversas atividades humanas, dos negócios às interações sociais, passando pela produção e difusão dos mais diversos conteúdos. Cerca de 53% dos lares em todo o mundo estão conectados (UIT, 2017) e as conexões móveis atingem índice perto de 60% (4,3 bilhões de pessoas no planeta).
Em muitos discursos, a Internet é apontada como elemento central ao desenvolvimento econômico e à promoção do bem-estar da sociedade. A promessa é que o acesso a essas e outras tecnologias de informação e comunicação pode gerar ganhos econômicos, ampliar o conhecimento disponível, promover a liberdade de expressão e fortalecer a democracia, criando novas oportunidades para o desenvolvimento e a troca de cultura e saber, ampliando a participação dos cidadãos e de formas de produção social não comerciais e não proprietárias. Essa “nova liberdade” traz como promessa a libertação individual, uma base para o engajamento em uma cultura mais crítica.
Contudo, também é preciso observar a dinâmica real da Internet e compreender como ela pode ou não cumprir os desejos e objetivos nobres e pensados para ela – incluindo sua manifestação concreta no âmbito do sistema capitalista e de como ele molda os mais diversos aspectos da vida social. Embora não exclusivamente, a Internet é formada em sua maioria por agentes econômicos em busca de lucro, um universo que vai das operadoras de acesso à web a todo o ecossistema de oferta de serviços e aplicativos, das grandes plataformas a pequenas empresas (startups)
Aí aparece um primeiro desafio. A despeito das falas de um mundo digital e conectado, mais de 40% da população global ainda está fora da Internet. Outra parte sofre com conexões limitadas, seja pela quantidade de dados disponíveis nos pacotes, seja pelas baixas velocidades de conexão. Já entre os que estão conectados, há desigualdades gritantes. Enquanto na Europa 84,2% dos lares possuem acesso, na África o índice é de 18%. Já no recorte de gênero, o índice de penetração chega a 51% entre os homens contra 45% entre as mulheres. A diferença é fortemente definida pela renda. No Brasil, a conectividade entre os mais pobres é de 42%, enquanto entre os mais ricos é de 76%.
Outro resultado da dinâmica empresarial na Rede é a manifestação da desigualdade na esfera da estrutura de mercado, por meio da concentração de propriedade. Este fenômeno ocorre tanto nas companhias de acesso quanto nos gigantes que ofertam serviços e aplicativos. Diferentemente da fala de que a Internet seria o reino da concorrência, o que se vê é a redução da competição dentro da web a partir do crescimento da digitalização e da coleta e processamento de dados. Esta natureza é potencializada por algo que veio a ser chamado de “efeito de rede”: o valor da rede aumenta na medida da ampliação das conexões pertencentes a ela, o que impulsiona o líder de mercado e torna a sua posição progressivamente mais distante dos concorrentes. Já aqueles excluídos da rede se deparam com barreiras à entrada cada vez maiores. O grande valor do Facebook estaria, assim, na sua base de usuários; o mesmo vale para o Airbnb, WhatsApp ou MercadoLivre.
Os dados pessoais, chamados de “novo petróleo” da economia, garantem a base dos negócios, seja com a publicidade personalizada de Google e Facebook, seja com as recomendações de compras da Amazon. Este cenário é estimulado pela combinação da coleta de dados em larga escala (denominada de Big Data) e por seu processamento inteligente por meio do uso de algoritmos e inteligência artificial. Por um lado, as redes sociais analisam todas as postagens e interações; por outro, aplicativos obrigam o acesso a contatos, imagens, microfones; sites instalam programas que rastreiam sua navegação; mecanismos de busca guardam todas as consultas e as cruzam com outras informações. Computadores e dispositivos passam a exigir dados biométricos, como íris ou digitais. O que é feito disso, em geral, não se sabe.
Aí aparecem dois novos desafios inter-relacionados: a violação da privacidade e o controle crescente das experiências pessoais e coletivas dos usuários, naquilo que tem sido chamado de “capitalismo de vigilância” – um processo descentralizado que coleta, processa e analisa dados, destacando os modelos de conduta e promovendo o ajuste dos comportamentos a estes.
Na esfera da produção e circulação de mensagens, os efeitos da concentração e do controle também são sentidos, com riscos significativos à democracia. O ascenso de companhias como Google, Facebook e Amazon atingiu, por exemplo, em cheio a indústria cultural – esta também monopolizada, vale lembrar. Contudo, os efeitos da concentração nesses gigantes são relevantes. O YouTube consegue ser ao mesmo tempo a maior plataforma de difusão de vídeos e de streaming de músicas, com 1,5 bilhão de usuários. A concentração de lucros na produção de arte e notícias fez mais do que artistas e jornalistas vulneráveis: ela tornou todos que buscam fazer negócios com a troca de ideias e cultura vulneráveis ao poder de um pequeno grupo de poderosos patrões – com impactos ainda mais relevantes para a diversidade e a pluralidade em países menores e com setores audiovisuais muito menos pujantes.
A cautela também vem sendo a tônica quando o tema é a circulação de notícias na web. A emergência da chamada pós-verdade, dos mecanismos de distribuição rápida e segmentada de notícias falsas e da polarização política vem se tornando uma questão vital ao futuro da democracia e uma agenda não somente para interessados nos tema, mas para governantes e autoridades. O criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee, expõe esse sentimento frente às promessas otimistas do passado. “Nós pensamos que seria o suficiente manter a Internet neutra e o mundo teria a capacidade de usá-la para construir sistemas maravilhosos, que produziriam democracia e verdade na ciência, [mas] … eu penso que as pessoas viram os últimos 12 meses e disseram que, na verdade, há uma evidência de que a web tem sido mais um fornecedor de inverdades do que de verdades, porque a forma do modelo de negócios calcado em publicidade encoraja pessoas a disponibilizar online coisas que vão ser clicadas”.
Introdução elaborada a partir da pesquisa “Monopólios Digitais – Concentração e Diversidade na Internet”, lançada em 2018 pelo Intervozes. Disponível em http://monopoliosdigitais.com.br/site/
Questões para debater
- 1. As novas tecnologias de comunicação fortalecem os processos democráticos ou servem para quem já tem poder, ter mais poder?
- 2. Que devemos propor para que o ambiente digital seja democrático, plural e diverso?
- 3. É possível ter novos mecanismos de participação política via internet? Se sim, quais?