Desobediência Civil

Desobediência Civil

Sistematização do debate no Encontro Nacional da Plataforma. Brasilia, abril de 2019.

Texto inicial que subsidiou o debate:

Estamos vivendo um momento de reestruturação do capitalismo, com novas formas de acumulação baseadas na apropriação dos bens comuns e dos corpos trabalhadores, não apenas da força de trabalho.
O avanço de novas formas tecnológicas de trabalho e de gestão oferecem a possibilidade de descarte de grandes contingentes de pessoas trabalhadoras e de não resguardar direitos pra os que se mantêm.
A mercantilização de todas as esferas da vida e o lucro acima de tudo também tem gerado formas nefastas de aniquilamento do outro como sujeito político e digno de existência social – estamos vendo surgir novas formas de biopoder, como expressa a noção de necropolítica (problematizado por Achile Mbembe).
A isso se alia uma onda conservadora e fundamentalista religiosa que alavanca a extrema direita racista, misógina e ultraneoliberal.
No Brasil, isso se expressa no governo Bolsonaro, com suas várias facções internas, que se articula com uma onda de fascismo social,com o militarismo, e possivelmente com as milícias.

Contra o Estado autoritário, é democrático e justo apelar para a desobediência civil.
Para alguns, a desobediência civil são ações individuais e coletivas contra a ordem legal estabelecida, mas ações de não violência. Para outros, pode-se recorrer a ações violentas contra o capital e a força bélica. E elas devem ser necessariamente coletivas.
Há um debate sobre a função da desobediência civil: se ela deve ser para restaurar direitos que não estão sendo implementados, promover mudanças legislativas ou pra destituir um poder despótico e constituir novas formas de exercício do poder e de organização social.
Daí que a noção de desobediência civil, não sendo a mesma coisa, dialoga com várias outras: ação direta, greve geral revolucionária, insurgência, revolução….
Não sabemos o que pode acontecer no Brasil em um futuro próximo, mas seguramente não vivemos em um Estado democrático. A democracia no Brasil nunca foi para todxs, os direitos nunca chegaram para todxs.

Mas, se é verdade que não estava bom, também é verdade que está piorando a cada minuto, tanto no que toca à democracia como no que diz respeito às condições de vida. Por isso precisamos resguardar e fortalecer nosso direito de auto-organização e de rebelião.
Isso está em questão com as últimas medidas deste governo que tenta coibir com o uso de violência, vigilância, prisões e assassinatos as iniciativas de protestos e de lutas por melhores condições de vida.
Desobediência civil é não agirmos dentro da lei quando estas leis não resguardam nossos direitos.
Para isso, é necessário contar com ampla adesão popular, capaz de dar salvaguardas, apoio político e segurança para ações fora da ordem.

Debates no grupo:

CONCEITUANDO E COMPARANDO: O QUE É DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Desobediência civil também pode ser comparado com objeção de consciência, ou seja, reivindicar o direito de não fazer algo contra suas convicções, como forma de lutar contra a ordem. Embora esse entendimento seja possível, e o exemplo dado de como jovens resistem a se alistar em tempos de guerra, foi refletido no grupo que a objeção de consciência também é usada por profissionais de saúde para não realização de procedimento de aborto permitido por lei em hospitais públicos, o que seria o uso para manter a ordem patriarcal contra as mulheres.
Foi dado o exemplo de uma prática forte em São Paulo que é a de hortas comunitárias em espaços públicos como uma forma de desobediência civil; e do debate sobre plano de educação em Manaus, no qual foram quebradas as regras impostas. Uma participante salientou que os negros sempre foram desobedientes, senão ainda estariam nas correntes, ressaltando que a experiência de luta com desobediência civil do movimento negro vem desde o regime escravocrata. Ela cita a Revolta dos Malês cuja consigna era “libertar escravos, tomar as fazendas, matar os brancos e tornar Luisa Mahin rainha”. Outro participante completou com o exemplo do Quilombo dos Palmares que durou 100 anos, tendo em torno de 20 mil pessoas, sendo este número a metade da população de Pernambuco à época, e que tinha terra comum, trabalho cooperado e usufruto coletivo.

Desobediência civil é recusar as regras do jogo e atuar fora dele, afirmou um participante. E foi complementado por outro: desde que para alterar a ordem vigente, porque também pode-se quebrar as regras do jogo para forçar a manutenção da ordem, como é o caso de uma ditadura militar. Outros exemplos foram trazidos para o debate como as ocupações de escolas pelos estudantes, greves, manifestações de rua, escracho, etc. Na França, os manifestantes coletes amarelos tacaram fogo em dez mil carros. No Brasil, nossas manifestações são muito ordeiras, com raras exceções, comentou-se.
Também foram citadas várias ações de desobediência civil contra a ordem moral, que às vezes é legal, mas nem sempre, a exemplo dos corpos nus nas ruas levados pelo movimento feminista, os beijaços em público do movimento LGBT, as retomadas indígenas, as ocupações urbanas e rurais, a quebra de voto de silêncio de religiosas, os mandatos coletivos que metem o pé na porta do sistema político.
Foi salientado também que para resistir a esta onda fascista que está em curso é preciso se humanizar, visibilizar a capacidade de luta dos povos e resgatar a coragem. Foram dados exemplos de ações dentro das igrejas contra a ordem eclesiástica, abertura de faixas em campos de futebol, dar as costas para o presidente em solenidade, ente outras.
Para alguns, a desobediência civil pressupõe, anteriormente, uma guerra de narrativas, para ter substância e possibilidade de apoio. Exige também preparo individual para diferentes tipos de ação, preparo físico e psicológico, além de estilo de ação e algumas premissas de segurança fundamentais.
Alguns viram a campanha de Boulos como desobediência civil por fazer uma aliança eleitoral entre movimentos (MTST e APIB) e um partido político, o PSOL. Outros viram que as diferentes expressões de mandato que não seguem o status quo, mandatos coletivos, populares, participativos, também poderiam ser vistos por esta ótica.

O grupo debateu ainda que as ações de desobediência civil dificilmente são planejadas, muitas vezes são ações disruptivas, cabendo ao movimento organizado conseguir atuar em consonância quando elas ocorrem, mas precisam ser coletivas e massivas. A desobediência civil, ao ser disruptiva, não nos permite saber aonde vai dar. Daí a importância de estarmos preparados para quando elas eclodem. Para outros, no mesmo debate, a desobediência civil é ação de inteligência e precisa ser muito bem planejada e silenciosa. É possível fazer ações de desobediência civil de forma coletiva e organizada como caminho para acumulação de forças, sendo ações não violentas, como o exemplo de Gandhi, ou como as ações lideradas por Malcom X.
Por fim, concluímos que não podemos tomar todas as ações de resistência e luta social que são criativas e/ou que inovam na forma de fazer como ações de desobediência civil. Um conceito tão amplo seria o mesmo que “luta” e perderia o sentido. É preciso o entendimento como ações de desobediência civil aquelas que se dão no contrapelo da lei e que são orientadas politicamente contra a ordem sistêmica da dominação.

QUANDO E COMO DESOBEDECER

Ficou nítido no debate o entendimento de que as ações de desobediência civil podem ser espontâneas ou planejadas e que, quase sempre, tem um caráter disruptivo. Mas também foi ressaltado que não se trata de nós, enquanto Plataforma, estarmos preparados, pois não nos vemos como vanguarda de nada. Trata-se de que a esquerda, especialmente partidária, tem que abrir seu coração e seu pensamento para dialogar com outras formas de ação que não são aquelas que ela organiza.

A Plataforma não dirige os movimentos e organizações que dela participam, então não tem capacidade de planejar ações de desobediência civil, mas pode e deve construir este debate, buscar capilarizar em vários movimentos sociais, para gerar adesão e apoio político para ações desse tipo.

Um ponto um pouco polêmico no grupo foi como fazer isso. Por exemplo, se o Brasil atacar a Venezuela devemos mobilizar a objeção de consciência? Perguntou um participante. Outra afirmou que dentro do movimento negro tem a discussão da luta armada, e pode ser que um companheiro decida isso e outros sigam…e aí, não vamos apoiar? Este exemplo, como possibilidade, foi contraposto com a realidade sobre qual lado está armado no Brasil e quem hoje está morrendo por causa disso, lembrando o genocídio da juventude negra.

Ocorreu também um reconhecimento forte da crise das instituições e do fato de que elas não nos representam. Razão para aprofundar o debate do tema desobediência civil. Todavia, alguns defenderam uma visão de pegar em armas e outros uma visão de disputa de narrativas. No meio houve reflexões sobre a possibilidade de ações disruptivas, mas somente em ações coletivas e com apoio popular, e sobre o banho de sangue que seria promovido se a ideia de luta armada vingasse em meio aos movimentos sociais que não reúnem capacidade de confronto.

Discutiu-se a existência de uma linha tênue entre o que é e o que não é violento. Podemos ver ato de defesa como violência ou como resistência. Não se trata de ode à violência, mas de reconhecimento da necessidade de defesa, em certas circunstâncias.
Concluímos também neste momento que o conceito de desobediência civil não pode ser tão amplo, indo de manifestação de rua a confronto armado. O rumo da Plataforma não é esse. A ideia é aprofundar o debate sobre democracia de forma que ela possa comtemplar a todas as pessoas e ser um fator de enfrentamento das desigualdades. Afirmamos que democracia e capitalismo-racismo-patriarcado não podem coexistir. São incompatíveis.

PARA ONDE VAMOS

Por fim, pensamos um processo a ser desenvolvido na Plataforma no próximo período com o objetivo de tornar a Plataforma uma referência no debate sobre desobediência civil. A ideia é manter-se como fonte de acúmulo e reflexão resgatando experiências como Quilombos, Panteras Negras, Coletes Amarelos. Pensamos em mapear e avaliar a ação da esquerda institucional frente às ações de desobediência civil, a exemplo das jornadas de julho de 2013, mas não só. Pretendemos incentivar a articulação de ações político-culturais com mostra de filmes, festivais, etc. Queremos fazer estudos sobre formas atuais e históricas e também sobre a cultura de protestos de outros países, a exemplo da Argentina.

O ciclo de debates da Plataforma, com as ações locais apoiadas e os encontros regionais, deveria contribuir para construir legitimidade para este tipo de ação e nos ajudar a disputar isso na sociedade. Devemos nos apoiar na reflexão sobre Estado Democrático de Direito para legitimar este debate. A tarefa da Plataforma é alimentar este debate para aproximar militantes de um olhar além das institucionalidades, para que ela possa ser acolhida como prática legítima de ação política frente ao Estado e frente ao capital.
Avaliamos que o bolsonarismo não tem controle sobre a turba fascista que ele desencadeia e estimula. Isso nos exige fazer este debate em conjunto com o debate sobre cuidado e segurança. Precisamos refletir sobre autocuidado e cuidado entre xs militantes de movimentos sociais e sobre segurança das organizações, das ações e das pessoas que delas participam.

Como disse uma companheira, a desobediência civil é motor da criatividade, libera energia vital para grandes transformações. Precisamos saltar fora da caixinha quando ela não nos permite existir. Precisamos ir contra a ordem quando ela é injusta e ilegítima.

Questões para debater