O abismo entre o Brasil real e o que governa: a baixa representatividade de raça e gênero na política institucional

Mesmo com a maioria da população brasileira sendo de mulheres e negra, a representatividade nos espaços de poder segue limitada, revelando fraudes e desafios no processo eleitoral

Por Karla Souza

Quando você pensa em um candidato político eleito no Brasil, qual é a imagem que vem à mente? Fenótipo, cor de pele e outras características pessoais refletem o imaginário social construído no decorrer da história do país. Se compararmos o perfil de um político eleito em 1897, ano da primeira eleição presidencial com o uso de urnas, com o de um candidato eleito em 2022, ano da mais recente eleição, o que mudou neste perfil?

O primeiro presidente eleito pelo voto popular no Brasil, Prudente de Morais, era um homem branco. Nos últimos 127 anos, o perfil dos eleitos não variou significativamente. Apesar de um aumento recente na pluralidade das candidaturas, isso não se traduz em uma representatividade efetiva para grupos negligenciados, que continuam sub-representados no cenário político nacional.

Conforme levantamento da série “Lupa nas Eleições”, realizada pelo UOL com base nas informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e que analisa as corridas eleitorais de 2000 a 2020, a vereança no país é majoritariamente masculina (86,7%), branca (68,8%) e composta por indivíduos com idade de 40 a 49 anos (36,2%). Mesmo com o aumento da multiplicidade de eleitos em algumas regiões, esses espaços continuam sendo dominados por pessoas brancas e do sexo masculino, refletindo as desigualdades presentes na política brasileira.

A participação feminina, por exemplo, ainda é bastante limitada. Conforme o levantamento, nas últimas seis eleições, o percentual de mulheres eleitas como vereadoras tem se mantido em torno de 10%, apesar de uma leve tendência de crescimento. Em 2020, as mulheres representaram apenas 16,1% dos eleitos, com 9,4 mil vereadoras frente a 48,7 mil homens. Esse número, embora superior ao de candidatas eleitas para prefeituras, continua longe de refletir a representatividade feminina no país, onde 51,5% da população é composta por mulheres.

A população negra também sofre com taxas de pleitos desproporcionais à composição demográfica do país. O percentual dessas candidaturas eleitas para vereança e prefeitos, entre 2016 e 2020, totalizaram 30% cada.

Essa sub-representação feminina e de outros grupos também não acompanha as mudanças demográficas observadas nos últimos anos. Segundo o Censo Demográfico de 2022, o Brasil tem uma maioria de pessoas que se autodeclaram negras (55,5%), superando a população branca (43,5%). Enquanto as populações indígena e amarela somam 0,8% e 0,4%, respectivamente. Mesmo assim, a presença de negros em cargos de poder ainda está abaixo dessas estatísticas.

Embora 52,7% das mais de 463 mil candidaturas deste ano sejam de pessoas negras, isso não necessariamente se traduzirá em maior representatividade nos cargos eleitos, dado o histórico de barreiras estruturais e institucionais enfrentadas por esses grupos no processo eleitoral, além das fraudes na autodeclaração racial

Rosane Borges, jornalista e pós-doutora em ciências da comunicação, observa que, embora o número de candidaturas negras tenha aumentado, a dificuldade para eleger pessoas e mulheres negras persiste. Ela explica que essas candidaturas ainda enfrentam desafios significativos, como a falta de recursos e a menor visibilidade na mídia. Em alguns casos chegam a ter um bom número de votos, mas o coeficiente partidário muitas vezes não favorece sua eleição. “Uma vez oficializadas, as candidaturas enfrentam uma série de obstáculos que dificultam a sua representação efetiva”, descreve.

A relevância das informações sobre raça e gênero dos candidatos nas eleições

Os dados sobre autodeclaração racial e percentual de gênero são muito importantes, não apenas para expressar quem tem vencido no sistema eleitoral, mas também para revelar a sub-representação nos espaços de decisão. É o que acredita Luciana Lindenmeyer, integrante da Frente Nacional de Mandatas e Mandatos Coletivos. “Para sabermos, por exemplo, que apenas 4% das cadeiras em espaços como o Senado são ocupadas por mulheres negras, precisamos da autodeclaração”, explica Lindenmeyer. Ela acrescenta ainda, que essas informações são fundamentais para lutas como a dos 30% de vagas para mulheres nos partidos políticos. 

Luciana Lindenmeyer, integrante da Frente Nacional de Mandatas e Mandatos Coletivos – Imagem: Arquivo Pessoal

Luciano Caparroz Santos, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), avalia que alguns fatores são determinantes na autodeclaração. “Primeiro, porque estamos debatendo este tema e isso traz luz sobre a necessidade de inclusão desses grupos marginalizados, e segundo, pela maior mobilização dessas pessoas”. Ele entende que há um avanço na representatividade e na consciência de que se autodeclarar ajuda a progredir, assim como a possibilidade de ter um peso maior na contagem dos recursos para as campanhas.

Luciano Caparroz Santos, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) – Imagem: Arquivo Pessoal

Luciana Lindenmeyer, no entanto, observa que embora o número de candidaturas negras esteja em expansão, nem todos os autodeclarados negros estão no processo de “tornar-se negro”, conceito de Neusa Santos Souza. Para ela, fraudes, como as que ocorrem nas ações afirmativas, também afetam o sistema eleitoral, com pessoas que sempre se identificaram como brancas mudando sua autodeclaração para “pardas” devido à presença de recursos financeiros.

Desde 2014, a autodeclaração de cor e raça tornou-se obrigatória, o que trouxe à tona discussões sobre a veracidade e a motivação dessas declarações. Entre os casos mais notáveis, destacam-se três exemplos significativos: Sebastião Melo, ACM Neto e David Almeida.

Rosane Borges ressalta que é essencial monitorar a presença ou ausência de negros, mulheres negras, mulheres em geral, pessoas trans e outros grupos historicamente marginalizados nas disputas políticas. “Isso é fundamental porque, além de forçar que os fundos eleitorais sejam repartidos de maneira equânime, o que não acontece, esses dados nos permitem propor, desenhar e executar políticas públicas afirmativas que facilitem a participação desses grupos.” 

Rosane Borges, jornalista e pós-doutora em ciências da comunicação – Imagem: Arquivo Pessoal

No entanto, a jornalista alerta que a autodeclaração, embora importante, precisa ser acompanhada de mecanismos de verificação devido às fraudes ocorridas nos últimos anos, enfatizando que “a autodeclaração não pode ser soberana”. 

Fundo eleitoral e as fraudes

A necessidade de multiplicidade na representação política engajou o surgimento de medidas para melhorar o quadro político nacional. Uma resolução do TSE estabelece a repartição dos recursos do fundo eleitoral com base na proporção de candidaturas de mulheres e candidatos negros por partido político. No entanto, a ordem não especifica se a distribuição deve ser feita entre grupos de candidatos ou diretamente entre os candidatos individuais.

Para garantir a participação feminina, a resolução determina que pelo menos 30% dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário devem ser destinados a candidaturas de mulheres. Portanto, se 50% das candidaturas de um partido forem femininas, metade do total do fundo alocado para esse partido deve ser destinado a essas candidaturas. No caso das candidaturas de pretendentes negros, a recomendação do TSE e do STF era de que a alocação dos recursos deveria seguir o percentual de candidatos negros em relação ao total de candidatos de cada gênero. No entanto, isso foi mudado com a promulgação da PEC da Anistia, que além de alterar as regras perdoa os partidos que não cumpriram a decisão. 

Esse avanço das medidas para equidade na representação racial e de gênero nos espaços de poder, fez com que as fraudes passassem a ocorrer. Essa prática de modificação no cadastro étnico-racial possibilita que os candidatos se beneficiem das cotas eleitorais para candidatos negros, o que levanta preocupações sobre a integridade do processo e a verdadeira representatividade racial.

Lindenmeyer destaca a importância da transparência e precisão na alocação dos recursos públicos destinados às candidaturas. Segundo ela, o fenômeno da autodeclaração racial é uma conquista do movimento negro, mas é crucial garantir que o fundo eleitoral, que é financiado com dinheiro público, não seja usado por candidatos que fraudam sua autodeclaração. 

“Precisamos de bancas de confirmação, como as usadas em concursos públicos, também para as eleições. Essas bancas devem ser diversas, compostas por pessoas negras, pardas, brancas, homens e mulheres, e devem revisar as autodeclarações antes da distribuição dos recursos”, defende. Ela afirma que “é fundamental que esses fundos cheguem efetivamente às pessoas negras (pretas e pardas) para promover a reparação histórica”